Amigos do Fingidor

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

A poesia é necessária?

 

O navio negreiro (tragédia no mar) 3/3

Castro Alves (1847-1871)

 

V

 

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus...

Ó mar, por que não apagas

Co’a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?...

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!...

 

Quem são estes desgraçados

Que não encontram em vós

Mais que o rir calmo da turba

Que excita a fúria do algoz?

Quem são?... Se a estrela se cala,

Se a vaga à pressa resvala

Como um cúmplice fugaz,

Perante a noite confusa...

Dize-o tu, severa Musa,

Musa libérrima, audaz!...

 

São os filhos do deserto,

Onde a terra esposa a luz.

Onde vive em campo aberto

A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão...

Homens simples, fortes, bravos...

Hoje míseros escravos

Sem luz, sem ar, sem razão...

 

São mulheres desgraçadas,

Como Agar o foi também,

Que sedentas, alquebradas,

De longe... bem longe vêm...

Trazendo com tíbios passos,

Filhos e algemas nos braços,

N’alma — lágrimas e fel.

Como Agar sofrendo tanto

Que nem o leite do pranto

Têm que dar para Ismael...

 

Lá nas areias infindas,

Das palmeiras no país,

Nasceram – crianças lindas,

Viveram – moças gentis...

Passa um dia a caravana,

Quando a virgem na cabana

Cisma da noite nos véus...

...Adeus, ó choça do monte,

...Adeus, palmeiras da fonte!...

...Adeus, amores... adeus!...

 

Depois, o areal extenso...

Depois, o oceano de pó...

Depois no horizonte imenso

Desertos... desertos só...

E a fome, o cansaço, a sede...

Ai! quanto infeliz que cede,

E cai p’ra não mais s’erguer!...

Vaga um lugar na cadeia,

Mas o chacal sobre a areia

Acha um corpo que roer...

 

Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormido à toa

Sob as tendas d’amplidão...

Hoje... o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar...

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar...

 

Ontem plena liberdade,

A vontade por poder...

Hoje... cum’lo de maldade,

Nem são livres p’ra... morrer...

Prende-os a mesma corrente

– Férrea, lúgubre serpente –

Nas roscas da escravidão.

E assim roubados à morte,

Dança a lúgubre coorte

Ao som do açoute... Irrisão!...

 

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus,

Se eu deliro... ou se é verdade

Tanto horror perante os céus...

Ó mar, por que não apagas

Co’a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?...

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!...

 

VI

 

E existe um povo que a bandeira empresta

P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!...

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio!... Musa! chora, chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto...

 

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança...

Tu, que da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança,

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!...

 

Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu na vaga,

Como um íris no pélago profundo!...

...Mas é infâmia de mais!... Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...

Andrada! arranca esse pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta dos teus mares!

 

Texto-referência:

ALVES, Castro. Obra Completa. Organização e fixação de texto: Eugênio Gomes. Edição do Sesquicentenário. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 277-284.