Amigos do Fingidor

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

A poesia é necessária?

 

Tarifa de embarque

Wally Salomão (1943-2003)

 

Sou sírio. O que é que te assombra, 

estrangeiro, se o mundo é a pátria em que 

todos vivemos, paridos pelo caos?

Meleagro de Gádara (100 a.C.)

 

 

Não te decepciones

ao pisares os pés no pó

que cobre a estrada real de Damasco.

Não descerres cortinas fantasmagóricas:

camadas de folheados

– água de flor de roseira

água de flor de laranjeira –

que guloso engolias,

gravuras de aldeãs portando ânforas ou cântaros,

cartões do templo de Baal

e das ruínas do reino de Zanubia em Palmira,

fotos do Allepo, Latakia, Tartus, Arward

que em criança folheavas nas páginas da revista ORIENTE

na idade de ouro solitária e febril

por entre as pilhas de fardos de tecidos

da loja Samira;

arabescos, poços, atalaias, minaretes, muezins, curvas

caligrafias torravam teus cílios, tuas retinas

no vão afã de erigires uma fonte e origem e lugar ao sol

na moldura acanhada do mundo.

 

Síria nenhuma iguala a Síria

que guardas intacta na tua mente régia.

Nunca viste o narguilé de ouro que tua avó paterna

– Kadije Sabra Suleiman –

exibia e fumava e borbulhava nos dias festivos

da ilha de Arward.

 

Retire da tela teu imaginário inchado

de filho de imigrante

e sereno perambule e perambule desassossegado

e perambule agarrado e desgarrado perambule

e perambule e perambule e perambule.

Perambule

– eis o único dote que as fatalidades te oferecem.

Perambule

– as divindades te dotam deste único talento.