Amigos do Fingidor

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

A poesia é necessária?

 

Sete sonetos de amor e morte

Mario Faustino (1930-1962)

 

I

O mundo que venci deu-me um amor

 

O mundo que venci deu-me um amor,

Um troféu perigoso, este cavalo

Carregado de infantes couraçados.

O mundo que venci deu-me um amor

Alado galopando em céus irados,

Por cima de qualquer muro de credo.

Por cima de qualquer fosso de sexo.

O mundo que venci deu-me um amor

Amor feito de insulto e pranto e riso,

Amor que força as portas dos infernos,

Amor que galga o cume ao paraíso.

Amor que dorme e treme. Que desperta

E torna contra mim, e me devora

E me rumina em cantos de vitória...

 

II

Nam sibyllam...

 

Lá onde um velho corpo desfraldava

As trêmulas imagens de seus anos;

Onde imaturo corpo condenava

Ao canibal solar seus tenros anos;

Lá onde em cada corpo vi gravadas

Lápides eloquentes de um passado

Ou de um futuro arguido pelos anos;

Lá cândidos leões alvijubados

Às brisas temporais se espedaçavam

Contra as salsas areias sibilantes;

Lá vi o pó do espaço me enrolando

Em turbilhões de peixes e presságios –

Pois na orla do mundo as delatantes

Sombras marinhas, vagas, me apontavam.

 

III

Inferno, eterno inverno, quero dar

 

Inferno, eterno inverno, quero dar

Teu nome à dor sem nome deste dia

Sem sol, céu sem furor, praia sem mar,

Escuma de alma à beira da agonia.

Inferno, eterno inverno, quero olhar

De frente a gorja em fogo da elegia,

Outono e purgatório, clima e lar

De silente quimera, quieta e fria.

Inverno, teu inferno a mim não traz

Mais do que a dura imagem do juízo

Final com que me aturde essa falaz

Beleza de teus verbos de granizo;

Carátula celeste, onde o fugaz

Estio de teu riso – paraíso?

 

IV

Agonistes

 

Dormia um redentor no sol que ardia

O louro e a cera, dons hipotecados

Da carne postulada pelo dia;

Dormia um redentor nos incensados

Lençóis que a lua póstuma cobria

De mirra e de açafrões embalsamados;

Dormia um redentor no navegante

Das mortalhas de escuma que roía

O verme de seus sonhos abafados;

E até no atol do sexo triunfante

Do mar e da salsugem da agonia

Dormia um redentor: e era bastante

Para acordá-lo o verso que bramia

No cérebro do atleta e lá morria.

 

V

Onde paira a canção recomeçada

 

Onde paira a canção recomeçada

No capitel de acanto de teu lar?

Onde prossegue a dança terminada

Nas lajes de meu tempo de chorar?

Rapaz, em minhas mãos cheias de areia

Conto os astros que faltam no horizonte

Da praia soluçante onde passeia

A espuma de teu fim, pranto sem fonte.

Oh juventude, um pálio de inocência

Jamais se estenderá sobre outra aurora

Mais clara que esta clara adolescência

Onde o lupanar da noite hoje devora:

Que vale o lenço impuro da elegia

Sobre teu rosto, lúcida alegria?

 

VI

Ego de Mona Kateudo

 

Dor, dor de minha alma, é madrugada

E aportam-me lembranças de quem amo.

E dobram sonhos na mal-estrelada

Memória arfante donde alguém que chamo

Para outros braços cardiais me nega

Restos de rosa entre lençóis de olvido.

Ao longe ladra um coração na cega

Noite ambulante. E escuto-te o mugido,

Oh vento que meu cérebro aleitaste,

Tempo que meu destino ruminaste.

Amor, amor, enquanto luzes, puro,

Dormido e claro, eu velo em vasto escuro,

Ouvindo as asas roucas de outro dia

Cantar sem despertar minha alegria.

 

VII

Estava lá Aquiles, que abraçava

 

Estava lá Aquiles, que abraçava

Enfim Heitor, secreto personagem

Do sonho que na tenda o torturava;

Estava lá Saul, tendo por pajem

Davi, que ao som da cítara cantava;

E estavam lá seteiros que pensavam

Sebastião e as chagas que o mataram.

Nesse jardim, quantos as mãos deixavam

Levar aos lábios que o atraiçoaram!

Era a cidade exata, aberta, clara:

Estava lá o arcanjo incendiado

Sentado aos pés de quem desafiara;

E estava lá um deus crucificado

Beijando uma vez mais o enforcado.