João do
Rio e “A alma encantadora das ruas”
Zemaria Pinto
Aos amigos livreiros e editores
independentes manauaras
Celestino Neto e Simas Pessoa,
personagens de João do Rio.
João Paulo Alberto Coelho Barreto nasceu em 1881 e morreu dias
antes de completar 40 anos. Algumas fontes acrescentam ainda ao longo nome
“Emílio Cristóvão dos Santos”, em lugar de “Alberto”. Mas, João do Rio só nasceria
em 1904, nas páginas d’A Gazeta de Notícias. Era apenas mais um
dos muitos pseudônimos que o jovem jornalista usava – entre os quais, o
enigmático X –, mas acabou sendo sua marca definitiva, sua verdadeira
identidade.
Naquele mesmo ano, Paulo Barreto publica uma série de
reportagens que depois enfeixa em livro: o original, e ainda hoje fundamental, As
religiões no Rio, um ensaio cultural e antropológico, dando destaque às
religiões de matriz africana, até então um tabu. Em 1907, uma comissão
presidida por Silvio Romero, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
aprova o livro e o autor: “O livro As religiões no Rio, do Sr. Paulo
Barreto, é único em seu gênero na literatura brasileira (...) O autor merece um
lugar neste Instituto.”
Jornalista de profissão, contista, romancista, dramaturgo e,
sobretudo, cronista, João do Rio, o Paulo Barreto, foi eleito, em 1910, na sua
terceira tentativa, para a Academia Brasileira de Letras, presidida então por
Ruy Barbosa. Tinha 28 anos.
Ruy Castro o descreve como “mulato, muito gordo, fala mansa,
olheiras escuras, fraques coloridos, chapéu coco, charuto à boca, diamante na
gravata.” Acrescente-se: homossexual assumido. Um escândalo.
Para seu biógrafo João Carlos Rodrigues, A alma
encantadora das ruas, publicado em 1908, é “uma das três melhores obras
sobre a cidade do Rio, ao lado do clássico Memórias de um sargento de
milícias e de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, que só seria
publicado em 1919.”
A crônica de João do Rio extrapola qualquer conceito que
tenhamos de crônica. Tratando do dia a dia da cidade, o autor faz reflexões que
só encontram paralelo no gênero ensaístico. Simpático ao sarcasmo e humor negro
de Oscar Wilde, suas crônicas-reportagens-ensaios antecipam o gênero consagrado
por George Orwell, a essa época apenas uma criança. Vide “Um dia na vida de um
vagabundo” ou “Como morrem os pobres”, do autor inglês, como exemplo do que
afirmamos.
Classificado por uns como pré-modernista – o que não quer
dizer absolutamente nada –, por outros como art nouveau, o que é falso, João
do Rio está mais próximo do Decadentismo, com toda a carga negativa que essa
classificação carrega, e sem qualquer relação com o Simbolismo, como querem
alguns críticos. Eu diria que muito próximo do que viria a ser o
Expressionismo.
A alma encantadora das ruas desnuda a pequena burguesia da capital, mostrando as
ruas e a sua paisagem sórdida (“O que se vê nas ruas”), a sua pobreza crônica e
epidêmica (“Três aspectos da miséria”), os crimes cotidianos (“Onde às vezes
termina a rua”) e a música que brota desse povo-paisagem (“A musa das ruas”).
Estes quatro títulos mais o introdutório “A rua” reúnem vinte e sete textos
elegantes, mas sem afetação – e com o realismo de um apaixonado pelo “cinematographo”,
que apenas engatinhava.
“Os mercadores de livros e a leitura das ruas” é uma faísca,
crítica e bem-humorada, entrevista na obra ainda envolta em sombras desse autor,
que, a título de descrever a psicologia das ruas a partir dos vendedores de
livros usados, mostra que a leitura popular estava estagnada, havia pelo menos
cinquenta anos. E se o povo estagnou em seu nível de leitura, estagnou também
na vida.
O jornalista de família pobre, que mandava cortar seus ternos
em Paris, foi polêmico e arrebanhou muitos detratores, ganhou fama e atraiu
muita inveja. Em menos de 20 anos construiu uma carreira literária sólida e
ainda, mais de cem anos depois, por desvendar. Seu enterro, numa tarde de
domingo, depois de dois dias de velório, saiu do jornal A Pátria, local
escolhido por sua mãe – que rejeitou a ABL e o IHGB. Fora seu último local de
trabalho. Segundo seu biógrafo, “estima-se que cerca de cem mil pessoas tenham
participado”, e, para quem duvidar, “existe registro cinematográfico”.
Este foi João do Rio, o dândi que amava as ruas.
Bibliografia:
CASTRO, Ruy. Metrópole à beira-mar: o Rio moderno dos anos
20. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: vida, paixão e obra.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.