Amigos do Fingidor

sexta-feira, 10 de março de 2023

Machado de Assis, poeta 1/4


Zemaria Pinto[1]

 

I

Machado de Assis fez poesia numa época ingrata. O Romantismo, no Brasil, esgotara aquela fase individualista, ultrarromântica, e começava a entrar na fase social, engajada nas lutas do tempo. Na Europa, entretanto, seus principais líderes, procuravam, há muito, outros rumos. A poesia de Machado reflete esse dilema: renega o individualismo e a poesia engajada, ao mesmo tempo em que busca, pelo aprendizado da tradução, novos caminhos. Em 1901, 26 anos depois de Americanas, seu terceiro livro “romântico” de poemas, ele daria a público a síntese dessa procura: Ocidentais.

Machado de Assis publicou apenas quatro livros de poesia: Crisálidas (1864), Falenas (1870), Americanas (1875) e Poesias Completas (1901) – este, reunindo os livros anteriores, mais Ocidentais. Edições recentes trazem uma seção com Outros Poemas, não publicados em livros, mais O Almada, “poema herói-cômico em 8 cantos (fragmentos)”. Enfatize-se que, em 1901, nas Poesias Completas, Machado cortou parte substancial dos livros anterioresCrisálidas, Falenas e Americanas. As edições que circulam hoje dividem-se, por um lado, entre respeitar a vontade do escritor, mantendo o corte, e considerando sua obra apenas o que foi publicado na edição de 1901; e, por outro lado, dando vezo à curiosidade, reproduzir não somente as partes cortadas, mas também os poemas que ele não publicara em livro. É bem verdade que entre estes últimos está o mais conhecido poema de Machado, “A Carolina”, que, salvo investigação em contrário, foi o único poema escrito depois das Poesias Completas, tendo sido publicado, como uma espécie de epígrafe, na miscelânea Relíquias de Casa Velha (1906). Na análise dos poemas, vamos nos ater à edição de 1901, considerando que ela cristaliza a vontade do autor.

 

II

Em Crisálidas, de 1864, como o próprio título sugere, o poeta, então com 25 anos, sente-se ainda em plena metamorfose[2]. Na edição de 1901, Machado diz que o prefaciador, Caetano Filgueiras, o chamara e aos seus contemporâneos de “meninos”, e lamenta-se:

 

Todos se foram para a morte ainda na flor da idade, e, exceto o nome de Casimiro de Abreu, nenhum se salvou. (A, p. VII)[3]

 

Não fosse ele o romancista e contista consagrado, talvez nem seu nome se salvasse, nem houvesse aquela nova edição...

Dado importante: dos 28 poemas iniciais, restaram apenas 12. Com a exclusão de mais da metade dos poemas, têm-se ideia do rigor que Machado tinha consigo mesmo. Mais um detalhe: dos 12 poemas que ficaram, 11 sofreram alterações entre uma edição e outra. ApenasÚltima folha” restou intacto (CURVELLO, p. 477). O livro abre com o poemaMusa Consolatrix” e fecha comÚltima Folha”. Ambos têm como tema a Musa, ícone supremo do Romantismo, ideal que musa humana alguma jamais alcançaria.

 

Musa consoladora,

Quando da minha fronte de mancebo

A última ilusão cair, bem como

Folha amarela e seca

Que ao chão atira a viração do outono,

Ah! no teu seio amigo

Acolhe-me, – e haverá minha alma aflita,

Em vez de algumas ilusões que teve,

A paz, o último bem, último e puro!

(“Musa Consolatrix”, A, p. 3)

 

Musa, desce do alto da montanha

Onde aspiraste o aroma da poesia,

E deixa ao eco dos sagrados ermos

A última harmonia.

(“Última folha”, A, p. 31)

 

Os poemas de Crisálidas batem nas velhas teclas românticas da mulher inatingível e intangível (“Visio”); do sofrimento pela inocência perdida (“Quinze anos”); do momento mágico em que a “virgem da manhãexpulsa os “íntimos sonhares que a noite protegera” (“Stella”). Mas uma surpreendente dupla de poemas parece antecipar aquela poesia da fase romântica que ainda estaria por vir, a terceira, de temática política e social: “Epitáfio do México” e “Polônia”. São poemas que deixam clara a preocupação de Machado de Assis com os acontecimentos que transtornam aqueles países, sem que se configurem, entretanto, em engajamento. A metáfora utilizada para ambas as nações é da morte, com a redenção pela ressurreição-liberdade, embora não se saiba ao certo o que representa a “santa liberdade”, referida nos dois poemas – um eufemismo para a revolução libertadora? Machado nunca mais tocou no assunto.

 

E quando a voz fatídica

Da santa liberdade

Vier em dias prósperos

Clamar à humanidade,

Então revivo o México

Da campa surgirá.

(“Epitáfio do México”, A, p. 9)

 

E a desvelada mãe, a irmã cuidosa,

A santa liberdade,

Como junto de um berço precioso,

À porta de teus lares vigiava.

(...)

Não ama a liberdade

Quem não chora contigo as dores tuas.

(“Polônia”, A, p. 10-12)

 

 Um outro bloco de poemas traz de volta os temas triviais do repertório romântico: a paixão que se desfaz na convivência (“Erro”); o amor interrompido pela morte (“Elegia”); a doçura do nome da amada (“Sinhá”); e o casimiriano “Horas Vivas”, um elogio ao sono:

 

Dorme: se os pesares

Repousares,

Vês? – por estes ares

Vamos rir;

Mortas, não; festivas,

E lascivas,

Somos – horas vivas

De dormir. 

(A, p. 17)

 

O poema mais surpreendente de Crisálidas é “Versos a Corina”, onde o jovem poeta exibe-se senhor de seu ofício, desfiando uma variedade de ritmos, de metros, de estrofes e de rimas, como uma espécie de síntese de si mesmo. Com 381 versos, divididos em seis partes, com estrofação diversa, foi a primeira vez que Machado usou o metro alexandrino, que convive, no poema, em plácida harmonia com outros metros, inclusive as populares redondilhas.

 

Tu nasceste de um beijo e de um olhar. O beijo

Numa hora de amor, de ternura e desejo,

Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor,

Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;

Depois, depois vestindo a forma peregrina,

aos meus olhos mortais, surgiste-me, Corina!

 

(...) Em que incendido horizonte

Podiam meus olhos ver

Tão meiga, tão viva estrela,

Abrir-se e resplandecer?

 

(...) Guarda estes versos que escrevi chorando

Como um alívio à minha soledade,

Como um dever do meu amor; e quando

Houver em ti um eco de saudade,

Beija estes versos que escrevi chorando.

 

(...) Em vão! Contrário a amor é nada o esforço humano,

É nada o vasto espaço, é nada o vasto oceano!

 

(...) Vou, sequioso espírito,

Cobrando novo alento,

N’asa veloz do vento

Correr de mar em mar;

Posso, fugindo ao cárcere,

Que à terra me tem preso,

Em novo ardor aceso,

Voar, voar, voar!

(A, p. 18-29)

 

Apesar da proximidade sonora do nome, Corina não tem nada a ver com Carolina, que ele viria a conhecer em 1868 e com quem se casaria no ano seguinte. A despeito das fofocas (CURVELLO, p. 479) que a identificam com uma senhora bem mais velha que Machado, o distanciamento histórico e crítico nos aconselha a não dar créditos a tais, vendo em Corina uma “musa” idealizada, nos padrões clássicos: Corina está para o jovem Machado como Marília para Gonzaga ou Nísia para Bocage. Com o desenvolvimento posterior do autor, pode-se dizer queVersos a Corina” inaugura o repertório “experimental” de Machado de Assis. 



[1] Do livro A história como metáfora e outros ensaios amorosos. Manaus: Reggo/AAL, 2018. p. 71-87.

[2] Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss, crisálida é o “estado intermediário, da metamorfose dos lepidópteros, entre a fase de larva ou lagarta e imago ou adulto”. Em outras palavras, é o casulo, intermediário entre a lagarta e a borboleta. Uma metáfora, portanto, do poeta em formação.

[3] Todas as referências a textos de Machado de Assis serão identificadas pela letra correspondente ao título do volume que compõe as Obras Completas usadas para este estudo, conforme bibliografia básica, relacionada ao final deste.


Este ensaio será postado em quatro partes, todas as sextas-feiras, até 31 de março.