Zemaria Pinto
I
Machado de Assis fez poesia numa época ingrata. O Romantismo, no
Brasil, esgotara aquela fase individualista,
ultrarromântica, e começava a entrar na fase social, engajada
nas lutas do tempo.
Na Europa, entretanto, seus principais
líderes, procuravam, há muito, outros rumos. A poesia
de Machado reflete esse
dilema: renega o individualismo
e a poesia engajada, ao mesmo tempo em que busca, pelo aprendizado da tradução,
novos caminhos.
Em 1901, 26 anos
depois de Americanas, seu terceiro livro “romântico”
de poemas, ele
daria a público a síntese dessa procura: Ocidentais.
Machado de Assis publicou apenas quatro livros de poesia: Crisálidas (1864), Falenas (1870), Americanas
(1875) e Poesias Completas (1901) – este, reunindo os livros anteriores,
mais Ocidentais.
Edições recentes
trazem uma seção com Outros Poemas,
não publicados em
livros, mais
O Almada, “poema
herói-cômico em 8 cantos
(fragmentos)”. Enfatize-se que, em 1901, nas Poesias
Completas, Machado cortou parte substancial
dos livros anteriores
– Crisálidas, Falenas e Americanas. As edições que circulam hoje
dividem-se, por um lado, entre respeitar a vontade
do escritor, mantendo o corte,
e considerando sua obra
apenas o que
foi publicado na edição de 1901; e, por
outro lado, dando vezo à curiosidade, reproduzir
não somente
as partes cortadas,
mas também
os poemas que
ele não
publicara em livro.
É bem verdade que entre estes últimos
está o mais conhecido
poema de Machado,
“A Carolina”, que, salvo
investigação em
contrário, foi o único
poema escrito
depois das Poesias Completas, tendo sido publicado, como
uma espécie de epígrafe, na miscelânea Relíquias de Casa
Velha (1906). Na análise dos poemas,
vamos nos ater
à edição de 1901, considerando que ela
cristaliza a vontade do autor.
II
Em Crisálidas, de 1864, como o próprio título sugere, o poeta, então com 25 anos, sente-se ainda
em plena
metamorfose. Na edição de 1901, Machado diz que
o prefaciador, Caetano Filgueiras, o chamara e aos seus
contemporâneos de “meninos”,
e lamenta-se:
Todos se foram para a morte
ainda na flor
da idade, e, exceto
o nome de Casimiro de Abreu, nenhum se salvou. (A, p. VII)
Não fosse ele
o romancista e contista consagrado, talvez
nem seu
nome se salvasse, nem
houvesse aquela nova edição...
Dado importante: dos 28 poemas iniciais,
restaram apenas 12. Com
a exclusão de mais
da metade dos poemas,
têm-se ideia do rigor que
Machado tinha
consigo mesmo.
Mais um
detalhe: dos 12 poemas
que ficaram, 11 sofreram alterações entre uma edição
e outra. Apenas
“Última folha”
restou intacto (CURVELLO, p. 477). O livro
abre com o poema
“Musa Consolatrix” e fecha com “Última Folha”. Ambos têm como tema a Musa, ícone supremo
do Romantismo, ideal
que musa
humana alguma jamais
alcançaria.
Musa consoladora,
Quando da minha
fronte de mancebo
A última ilusão
cair, bem como
Folha amarela
e seca
Que ao chão
atira a viração do outono,
Ah! no teu seio
amigo
Acolhe-me, – e haverá minha alma aflita,
Em vez
de algumas ilusões que
teve,
A paz, o último
bem, último e puro!
(“Musa Consolatrix”, A, p. 3)
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma
da poesia,
E deixa ao eco
dos sagrados ermos
A última harmonia.
(“Última folha”,
A, p. 31)
Os poemas
de Crisálidas batem nas velhas teclas românticas da mulher
inatingível e intangível
(“Visio”); do sofrimento pela inocência perdida (“Quinze anos”);
do momento mágico
em que
a “virgem da manhã”
expulsa os “íntimos
sonhares que
a noite protegera” (“Stella”). Mas uma surpreendente dupla de poemas
parece antecipar aquela poesia
da fase romântica que
ainda estaria por
vir, a terceira,
de temática política e social: “Epitáfio do México” e “Polônia”.
São poemas
que deixam clara a preocupação
de Machado de Assis com
os acontecimentos que
transtornam aqueles países, sem que se
configurem, entretanto, em engajamento. A metáfora
utilizada para ambas as nações
é da morte, com
a redenção pela
ressurreição-liberdade, embora não se saiba ao
certo o que
representa a “santa liberdade”,
referida nos dois poemas – um eufemismo para a revolução libertadora? Machado
nunca mais tocou no assunto.
E quando a voz fatídica
Da santa liberdade
Vier em dias prósperos
Clamar à humanidade,
Então revivo o México
Da campa surgirá.
(“Epitáfio do México”, A, p. 9)
E a desvelada mãe, a irmã cuidosa,
A santa liberdade,
Como junto de um berço precioso,
À porta de teus lares vigiava.
(...)
Não ama
a liberdade
Quem não
chora contigo
as dores tuas.
(“Polônia”, A, p. 10-12)
Um outro bloco de poemas traz de volta
os temas triviais do repertório romântico: a paixão
que se desfaz na convivência
(“Erro”); o amor
interrompido pela
morte (“Elegia”); a doçura do nome da amada (“Sinhá”); e o casimiriano “Horas
Vivas”, um
elogio ao sono:
Dorme: se os
pesares
Repousares,
Vês? – por estes ares
Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
E lascivas,
Somos – horas vivas
De dormir.
(A, p. 17)
O poema
mais surpreendente
de Crisálidas é “Versos a Corina”, onde
o jovem poeta exibe-se senhor de seu ofício,
desfiando uma variedade de ritmos, de metros,
de estrofes e de rimas,
como uma espécie
de síntese de si
mesmo. Com
381 versos, divididos em seis partes, com
estrofação diversa, foi a primeira vez que Machado
usou o metro alexandrino,
que convive, no poema,
em plácida
harmonia com
outros metros,
inclusive as populares
redondilhas.
Tu nasceste de um beijo e de um olhar. O beijo
Numa hora de amor,
de ternura e desejo,
Uniu a terra e o céu.
O olhar foi do Senhor,
Olhar de vida,
olhar de graça,
olhar de amor;
Depois, depois
vestindo a forma peregrina,
aos meus olhos
mortais, surgiste-me, Corina!
(...) Em que
incendido horizonte
Podiam meus olhos
ver
Tão meiga,
tão viva
estrela,
Abrir-se e resplandecer?
(...) Guarda estes
versos que
escrevi chorando
Como um
alívio à minha
soledade,
Como um
dever do meu amor; e quando
Houver em ti um
eco de saudade,
Beija estes
versos que
escrevi chorando.
(...) Em vão!
Contrário a amor
é nada o esforço
humano,
É nada o vasto
espaço, é nada
o vasto oceano!
(...) Vou, sequioso espírito,
Cobrando novo alento,
N’asa veloz
do vento
Correr de mar
em mar;
Posso, fugindo ao cárcere,
Que à terra
me tem preso,
Em novo
ardor aceso,
Voar, voar, voar!
(A, p. 18-29)
Apesar da proximidade
sonora do nome,
Corina não tem nada
a ver com Carolina, que
ele só
viria a conhecer em
1868 e com quem
se casaria no ano
seguinte. A despeito
das fofocas (CURVELLO, p. 479) que a identificam com
uma senhora bem mais velha que Machado, o
distanciamento histórico e crítico nos aconselha a não dar créditos a tais,
vendo em Corina uma “musa” idealizada, nos padrões clássicos: Corina está para
o jovem Machado
como Marília para
Gonzaga ou Nísia para
Bocage. Com o desenvolvimento
posterior do autor,
pode-se dizer que
“Versos a Corina” inaugura o repertório “experimental” de Machado
de Assis.
Este ensaio será postado em quatro partes, todas as sextas-feiras, até 31 de março.