Amigos do Fingidor

sexta-feira, 31 de março de 2023

Machado de Assis, poeta 4/4


Zemaria Pinto

 

V

Ocidentais foi publicado no volume das Poesias Completas, em 1901, mas boa parte dos poemas que o integram havia sido publicada antes, em revistas e jornais. Assim como os dois primeiros, é uma coleção de poemas, sem um projeto autônomo de unidade, como o que orienta Americanas. O título é uma referência a Orientais, de Victor Hugo, de 1829 – ao mesmo tempo em que homenageia o mestre, Machado faz-lhe um contraponto: se Orientais era uma suma romântica, Ocidentais era seu antípoda, ainda que de difícil classificação.

Muito se escreveu sobre Ocidentais: se disse, por exemplo, que era o melhor da poesia de Machado de Assis, e havia de sê-lo, afinal, de autor que amadureceu nos outros gênerosisto é, não nasceu “genial”, como tantos que morreriam em tenra idadenão era de se esperar diferente com relação à poesia. se traçaram paralelos entre o poeta e os narradores da segunda fase ficcional de Machado, procurando, para além do fingimento, descobrir-lhe os estados de alma (BOSI, p. 178-180). O amargor schopenhaueriano, o ceticismo e o pessimismo que marcam a segunda fase do ficcionista se fazem presentes também na “segunda fase” do poeta – considerando-se que os três primeiros livros eram românticos. Ora, o autor era um , os gêneros, diversos. Pontos de contato seriam não apenas esperados como desejados, resultando em evidências da honestidade intelectual do autor.

Foi dessa coleção que saíram alguns dos poemas mais antologiados de Machado de Assis: “Círculo vicioso”, “A mosca azul” e “Soneto de natal”. Os três, construídos numa linguagem de rara simplicidade filosófica, caíram no gosto popular. Mas é nesse livro também, a despeito de toda a rigidez na seleção definitiva dos outros livros, que ele encaixa uns poemas de circunstânciaou de mera celebração (seja a grandes vultos da literatura seja a amigos; no caso de “Alencar”, uma combinação de ambas). Aqui estão também suas mais significativas traduções de poemas: “O Corvo”, de Poe; o monólogoTo be or not to be” (assim mesmo intitulado), do terceiro ato do Hamlet, de Shakespeare; o Canto XXV do “Inferno”, da Divina Comédia, de Dante; e “Os animais iscados da peste”, de La Fontaine. Há ainda dois poemas longos, narrativos, na mesma gasta estrutura utilizada nos livros anteriores, datados, aliás, daquela época: “Velho Fragmento”, que algumas edições trazem separado do todo, com o título “O Almada”, e “Clódia”, sobre a fogosa musa do veronês Catulo, lírico do século I a.C., que a cantara sob o disfarce de Lésbia.

Sem nos apropriarmos da fúria cortadora do autor para com seus livros anteriores, vamos à essência de Ocidentais: descontados os desgastados antológicos, os de circunstância e/ou celebração, as traduções e mesmo os velhos narrativos – posto não trazerem nenhuma novidade – sobram 7 poemas, apenas: “O desfecho”, “Uma criatura”, “Mundo interior”, “Perguntas sem resposta”, “Lindoia”, “Suave mari magno” e “No alto”. Vejamos brevemente cada um deles.

“O desfecho” – abrindo o livro, dá o seu tom: contrariando o mito, Prometeu, pela primeira vez, não tem o fígado regenerado. A vida é comparada ao suplício eterno do Titã: o sofrimento tem termo com a morte.

“Uma criatura” – o poeta brinca com a ambiguidade do monstro que descreve, concluindo: “Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.” (C, p. 126).

Mundo interior” – na comparação entre o mundo exterior, a natureza, que tem a preferência da maioria, e o mundo interior, o âmago do indivíduo, o poeta opta por este, totalmente diverso daquele, mas que guarda em sium segredo que atrai, que desafia – e dorme.” (C, p. 129).

Perguntas sem resposta” e “Lindoia” – formam o “interlúdio lírico” de Ocidentais. O primeiro, do ponto de vista mítico; o segundo, do ponto de vista literário. EmPerguntas sem resposta”, uma noiva, “pálida Maria”, divide com a estrela Vênus a alegria do casamento a realizar-se em três dias. A morte súbita do noivo, entretanto, muda o seu estado de espírito e ela, na mesma hora do cair da tarde, divide com a estrela a sua imensurável tristeza, mas a estrela fica-lhe indiferente. “Lindoia” é uma pérola de delicadeza, incrustada na áspera estrutura de Ocidentais. Como uma última homenagem ao Basílio da Gama que ele amara desde adolescente, Machado compõe um soneto promovendo um inusitado encontro entre as musas Lindoia, Moema, Coema, Iguaçu e Iracema, sem que elas percam seu aspecto literário[1], sem que pareçam osso e carne, mas espíritos imaginados, habitantes do mundo interior, para apropriar-se, no desfecho, do verso genial de seu velho mestre:

 

Além do amável, gracioso porte,

Vede o mimo, a ternura que lhe resta.

Tanto inda é bela no seu rosto a morte!

(C, p. 138)

 

A simples troca do tempo do verbo, trazendo-o ao presente, acrescido do advérbio para completar a métrica, metamorfoseia o verso do Gama (“Tanto era bela no seu rosto a morte!”) em autêntico verso de Machado.

Suave mari magno” – referência a um dístico de Lucrécio[2] sobre a banalidade do mal quando se está a salvo dele, o poema é uma sequência de imagens mostrando a morte de um cão, possivelmente envenenado, em plena rua, e a multidão de curiosos a assisti-la, passivamente. Sonetilho combinando redondilhas maiores e tetrassílabos, alguns exegetas da obra de Machado tentaram extrair desse poema uma relação com sua condição de epiléptico (TEIXEIRA, p. 186). Se assim o fosse, seria humor negro e de péssimo gosto. “Suave mari magno” se integra no eixo dos demais poemas: a morte é banalizada, não por se tratar de um cão – na verdade, uma metáfora da condição humanamas por não comover além da mera curiosidade.

“No alto” – o ponto máximo de Ocidentais. Machado fecha o livro com esse soneto que combina alexandrinos e hexassílabos, usando os mitos de Ariel e Caliban para alegorizar a trajetória do poeta:

 

O poeta chegara ao alto da montanha,

E, quando ia a descer a vertente do oeste,

Viu uma cousa estranha,

Uma figura má.

 

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,

Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,

Num tom medroso e agreste

Pergunta o que será.

 

Como se perde no ar um som festivo e doce,

Ou bem como se fosse

Um pensamento vão,

 

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.

Para descer a encosta

O outro estendeu-lhe a mão.

(C, p. 160)

 

Ariel, o espírito jovial, abandona o caminhante quando este se prepara para a jornada de descida, no outro lado da montanha – o lado desconhecido. O “outro”, inominado, mas, por oposição ao primeiro, Caliban, assume o comando da jornada, como uma metáfora das dificuldades do poeta, na lide cotidiana.

Os temas da morte e da interioridade dominam os três poemas que antecedem o interlúdio lírico. A distensão obtida por este, entretanto, é apenas parcial, porque ambos os poemas também tratam da morte. O sexto poema retoma a maneira sombria do tema dominante. Por fim, o último poema promove um recuo e apenas sugere o caminho por onde Caliban guiará o poeta. Ao final desse caminho, por certo, ele encontrará a “indesejada das gentes”.

Ocidentais tem como fulcro o tema da morte, que Machado sabia próxima. Mas não é : o mistério da morte pode ser desvendado pelo conhecimento da vida – daí a alusão a Prometeu, umsímbolo da vontade humana de intelectualidade” (BACHELARD, p. 104), que se realiza no exercício da rebeldia, com a quebra de paradigmas e a ruptura dos modelos consagrados. Machado de Assis sabia-se um Prometeu da literatura de língua portuguesa, tinha plena consciência disso, e deixou essa ideia gravada a fogo naqueles sete poemas de Ocidentais. Como poeta, ele vai voltar ao tema ainda uma vez, ao registrar a morte de Carolina, num poema que harmoniza a dor particular a uma dor mítica, que o poeta, nunca antes tão verdadeiro, não se constrange de expor:

 

Querida, ao do leito derradeiro

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

 

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs um mundo inteiro.

 

Trago-te flores, ─ restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados.

 

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

(“A Carolina”, D, p. VI)

 

Neste poema, mais que em qualquer outro que tenha escrito, Machado de Assis mostrou-se organicamente intelectual – aqui, não mais na concepção gramsciana[3]. Desnudou-se perante seu leitor e assumiu seu lirismo sem fingimentos, entregando-lhe mais que seu pensamento, entregando-lhe a própria alma: essencialmente intelectual, no duplo sentido que essa expressão pode assumir.  Se “nenhuma arte é mais visceralmente nacional do que a poesia” (ELIOT, p. 30), podemos afirmar que a permanência de um poema está diretamente relacionada com a identificação entre o poeta e seu povo.

 

VI

Ao longo de 40 anos de produção, o poeta Machado de Assis jamais se acomodou a formas ou fórmulas. O romântico de Crisálidas dá lugar ao experimentador em Falenas – ousando novas linguagens, entre parnasiano e simbolista, e inventando um narrador que depois lhe seria muito útil na sua prosa de ficção. Americanas é o laboratório onde ele procura demonstrar o “instinto de nacionalidade”, sobre o qual refletia desde muito cedo, quase adolescente. A síntese de sua procura, já o disse antes, ele enfeixa em Ocidentais, livro em que se aproxima, naqueles sete poemas apontados, somados aos três antológicos, de uma poesia de cunho metafísico, de serena investigação ontológica, onde a morte não é o fim, mas, metaforizada na beleza do rosto de Moema, o início de uma nova etapa. Para Machado de Assis, o início da imortalidade. 

 

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

 

MACHADO DE ASSIS. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1997.

A.    Crisálidas, Falenas & Americanas

B.     Crítica & Variedades

C.     O Almada & Outros poemas

D.    Relíquias de casa velha

 

BIBLIOGRAFIA DE APOIO

 

ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. Projetos para o Brasil. Organização: Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Companhia das Letras; Publifolha, 2000.

BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. Trad. Norma Telles. São Paulo: Brasiliense, 1990.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 37ª ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

CURVELLO, Mario. Falsete à poesia de Machado de Assis. In: BOSI, Alfredo et alii. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982. 

ELIOT, T. S. A função social da poesia. In: De poesia e poetas. Tradução: Ivan Junqueira. São Paulo: Brasiliense, 1991.

GRAÇA, Antônio Paulo. Uma poética do genocídio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.

RÓNAI, Paulo. Não perca o seu latim. Colaboração: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 5ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

TEIXEIRA, Ivan. Apresentação de Machado de Assis. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1988.



[1] Lindoia, a heroína de O Uraguai (Basílio da Gama), recepciona as demais damas do indianismo: Moema, de Caramuru (Santa Rita Durão), Coema, de Os Timbiras (Gonçalves Dias), Iguaçu, de A Confederação dos Tamoios (Gonçalves de Magalhães) e Iracema, a própria, de Alencar.

[2] Suave mari magno. Primeiras palavras de um dístico de Lucrécio (A Natureza, Livro II, 1-2): Suave, mari magno, turbantibus aequora ventis / E terra magnum alterius spectare laborem. “É agradável, enquanto no mar revoltoso os ventos levantam as águas, observar da terra os grandes esforços de um outro.” (RÓNAI, p. 167).

[3] Machado é um intelectual orgânico, tanto no sentido empregado por Gramsci, com relação a sua classe – a dos escritores – quanto numa acepção biológica: ele vivia de e para escrever. Escrever era a sua vida.