Amigos do Fingidor

sexta-feira, 17 de março de 2023

Machado de Assis, poeta 2/4


Zemaria Pinto

 

III

Os 19 poemas de Falenas[1], de 1870, trazem um poeta mais maduro, mais contido, ainda a explorar temas românticos, mas sem se furtar a novas experiências. O título[2] revela a continuidade do trabalho iniciado em Crisálidas, porém aqui a musanão é invocada como ente mítico: é uma musa de contornos humanizados, de reflexos místicos, como emQuando ela fala”, “Sombras” e “Musa dos olhos verdes”. O poemaNoivadocertamente foi composto em intenção da esposa recente, e um poema entre todos, “O verme”, dá bem a dimensão humana daquela musa:

 

Existe uma flor que encerra

Celeste orvalho e perfume.

Plantou-a em fecunda terra

Mão benéfica de um nume.

 

Um verme asqueroso e feio,

Gerado em lodo mortal,

Busca esta flor virginal

E vai dormir-lhe no seio.

 

Morde, sangra, rasga e mina,

Suga-lhe a vida e o alento;

A flor o cálix inclina;

As folhas, leva-as o vento.

 

Depois, nem resta o perfume

Nos ares da solidão...

Esta flor é o coração,

Aquele verme o ciúme.

(A, p. 79)

 

Se Corina, existindo ou não, era uma idealização em Crisálidas, Carolina é a musa viva de Falenas. Jean-Michel Massa chega a contabilizar: “cinco poemas, pelo menos – talvez oito –, são consagrados ou dedicados a Carolina” (apud CURVELLO, p. 480).

Não passa despercebido o poemaUn vieux pays”, escrito em francês. E não é por acaso, é certo, que logo na sequência, Machado coloca “Luz entre sombras”, seu primeiro soneto conhecido. Ambos os poemas tem feição claramente simbolista, antecipando em mais de 20 anos a obra maior de Cruz e Sousa. Não nos esqueçamos que simbolistas e parnasianos têm, na França, uma origem comum: a revista Le Parnasse Contemporain. Machado sabia, claro, das novidades de Paris.

 

Noite que assombra a memória,

Noite que os medos convida

Erma, triste, merencória.

 

No entanto... minh’alma olvida

Dor que se transforma em glória,

Morte que se rompe em vida.

(“Luz entre sombras”, A, p. 80)

 

Bem a propósito, ele ainda não assumira, pelo menos na poesia, o “instinto de nacionalidade” que idealizara mal saído da adolescência[3]. O livro traz também traduções de vários poetas chineses, chamadas, no conjunto, de “Lira chinesa”, adaptadas a partir de uma tradução francesa em prosa. Os poemas da “Lira chinesa”, bem como o beloManhã de inverno”, poderiam entrar em qualquer antologia parnasiana. Aliás, Machado foi um precursor daquela escola, que viria a conhecer a glória mais de uma década depois, nos anos 1880, com as publicações de Raimundo Correa, Alberto de Oliveira e Olavo Bilac.

“Uma ode de Anacreonte” é um longo poema de estrutura dramática, todo em alexandrinos, onde a feição classicista da poesia de Machado de Assis emerge cristalina. Fechando o volume, o mais longo ainda – 776 versos, dividido em 97 oitavas – “Pálida Elvira”, poema narrativo. O narrador de “Pálida Elvira” antecipa o que viria a ser o típico narrador machadiano, a conversar com sua leitora e a interferir na triste história que conta: o poeta libertino Heitor abandona Elvira grávida e vai para a Europa; ao retornar e procurá-la, o tio da moça informa-o da morte de Elvira e nega-lhe a guarda do filho; Heitor, então, há muito arrependido de haver abandonado a moça em troca de prazeres efêmeros, suicida-se. Este poema dialoga com “A Elvira”, tradução que Machado faz de Lamartine, também incluído em Falenas, funcionando como um contraponto ao primeiro. Observemos a linguagem do narrador:

 

Fosse eu moça e bonita... Neste lance

Se o meu leitor é homem sisudo,

Fecha tranquilamente o meu romance,

Que não serve a recreio nem a estudo;

Não entendendo a força nem o alcance

De semelhante amor, condena tudo;

Abre um volume sério, farto e enorme,

Algumas folhas , boceja... E dorme.

(“Pálida Elvira”, A, p. 103)

 

Trata-se de um procedimento inovador para a época: a tragédia narrada, ultrarromântica, não é mais importante que a narrativa, totalmente fora do convencional. Um texto em que “a intenção formal quebra o equilíbrio da composição estética e propõe a leitura do processo de composição” (CURVELLO, p. 483). “Pálida Elvira” é outra marca decisiva no repertório experimental de Machado de Assis.



[1] Eram 28, na edição original, tendo sido cortados, na edição das Poesias Completas, 9 poemas.

[2] Machado passa-nos a ideia de planejamento e continuidade na sua poesia: falena, quem nos ensina agora é Aurélio Buarque, é um “gênero de insetos lepidópteros, noctuídeos”; um tipo de mariposa noturna. A metáfora é clara: em relação ao livro anterior, o poeta evoluíra para um outro estágio da sua criação.

[3] Um dos conceitos fundamentais para entender a obra de Machado de Assis é o “instinto de nacionalidade”. A ideia aparece no artigo “O passado, o presente e o futuro da Literatura” (B, p. 3-10), de 1858, e vai encontrar sua melhor definição técnica e teórica 15 anos depois, em “Notícia da atual Literatura Brasileira – instinto de nacionalidade” (B, p. 17-28). Machado vai à raiz da formação de um pensamento autenticamente nacional, porque entende que a nação só poderá ser pensada a partir de modelos autóctones, absorvendo (antropofagicamente?) a experiência estrangeira, mas sem se submeter a ela.