Zemaria Pinto
III
Os 19 poemas de Falenas, de 1870, trazem um poeta mais maduro, mais contido, ainda a explorar
temas românticos, mas sem se furtar a
novas experiências. O título
revela a continuidade do trabalho iniciado em Crisálidas, porém aqui a musa já não é invocada como ente
mítico: é uma musa de contornos humanizados, de reflexos
místicos, como em
“Quando ela
fala”, “Sombras”
e “Musa dos olhos
verdes”. O poema
“Noivado” certamente
foi composto em
intenção da esposa
recente, e um
poema entre
todos, “O verme”,
dá bem a dimensão
humana daquela musa:
Existe uma flor que
encerra
Celeste
orvalho e perfume.
Plantou-a em fecunda terra
Mão benéfica de
um nume.
Um verme asqueroso e feio,
Gerado em lodo mortal,
Busca esta flor
virginal
E vai dormir-lhe
no seio.
Morde, sangra,
rasga e mina,
Suga-lhe a vida e o alento;
A flor o cálix
inclina;
As folhas, leva-as o vento.
Depois, nem resta o perfume
Nos ares da solidão...
Esta flor é o coração,
Aquele verme o ciúme.
(A, p. 79)
Se Corina, existindo ou
não, era uma idealização em Crisálidas,
Carolina é a musa viva de Falenas. Jean-Michel
Massa chega a contabilizar: “cinco poemas, pelo menos – talvez oito –, são
consagrados ou dedicados a Carolina” (apud CURVELLO, p. 480).
Não passa
despercebido o poema “Un vieux pays”, escrito
em francês.
E não é por
acaso, é certo,
que logo
na sequência, Machado coloca “Luz entre sombras”, seu primeiro soneto conhecido. Ambos
os poemas tem feição
claramente simbolista, antecipando em mais de 20 anos a obra maior de Cruz e
Sousa. Não nos
esqueçamos que simbolistas e parnasianos têm, na França, uma origem
comum: a revista Le Parnasse Contemporain.
Machado sabia, claro,
das novidades de Paris.
Noite que
assombra a memória,
Noite que
os medos convida
Erma, triste,
merencória.
No entanto... minh’alma olvida
Dor que
se transforma em glória,
Morte que
se rompe em vida.
(“Luz entre sombras”, A, p. 80)
Bem a propósito,
ele ainda
não assumira, pelo
menos na poesia,
o “instinto de nacionalidade”
que idealizara mal saído da adolescência. O
livro traz também
traduções de vários
poetas chineses, chamadas,
no conjunto, de “Lira
chinesa”, adaptadas a partir de uma tradução francesa em
prosa. Os poemas
da “Lira chinesa”, bem
como o belo
“Manhã de inverno”,
poderiam entrar em
qualquer antologia
parnasiana. Aliás,
Machado foi um
precursor daquela escola,
que só
viria a conhecer a glória
mais de uma década depois,
já nos
anos 1880, com
as publicações de Raimundo Correa, Alberto de Oliveira
e Olavo Bilac.
“Uma ode
de Anacreonte” é um longo
poema de estrutura
dramática, todo
em alexandrinos,
onde a feição
classicista da poesia de Machado de Assis emerge cristalina.
Fechando o volume, o mais longo ainda – 776 versos,
dividido em 97 oitavas
– “Pálida Elvira”, poema
narrativo. O narrador de “Pálida Elvira”
antecipa o que viria a ser
o típico narrador machadiano,
a conversar com
sua leitora e a interferir
na triste história
que conta: o poeta libertino
Heitor abandona Elvira grávida e vai para a Europa; ao retornar e
procurá-la, o tio da moça informa-o da morte de
Elvira e nega-lhe a guarda do filho;
Heitor, então, há muito
arrependido de haver abandonado a moça em troca de prazeres
efêmeros, suicida-se. Este poema dialoga com
“A Elvira”, tradução que Machado faz
de Lamartine, também incluído em Falenas,
funcionando como um
contraponto ao primeiro. Observemos a linguagem do narrador:
Fosse eu moça e bonita... Neste lance
Se o meu leitor é já homem sisudo,
Fecha tranquilamente o meu
romance,
Que não serve a
recreio nem a
estudo;
Não entendendo a força
nem o alcance
De semelhante amor,
condena tudo;
Abre um volume sério, farto e enorme,
Algumas folhas lê, boceja... E dorme.
(“Pálida Elvira”,
A, p. 103)
Trata-se de um procedimento inovador
para a época: a tragédia narrada, ultrarromântica, não é mais importante que
a narrativa, totalmente
fora do convencional. Um texto em que “a
intenção formal
quebra o equilíbrio
da composição estética
e propõe a leitura do processo
de composição” (CURVELLO, p. 483). “Pálida Elvira” é outra marca decisiva no repertório experimental de Machado
de Assis.
Um
dos conceitos fundamentais para entender a obra de Machado de Assis é o
“instinto de nacionalidade”. A ideia aparece no artigo “O passado, o presente e
o futuro da Literatura” (B, p. 3-10), de 1858, e vai encontrar sua melhor
definição técnica e teórica 15 anos depois, em “Notícia da atual Literatura
Brasileira – instinto de nacionalidade” (B, p. 17-28). Machado vai à raiz da
formação de um pensamento autenticamente nacional, porque entende que a nação
só poderá ser pensada a partir de modelos autóctones, absorvendo
(antropofagicamente?) a experiência estrangeira, mas sem se submeter a ela.