Zemaria
Pinto
IV
Americanas, de 1875, vem conjugar,
no espírito experimentalista de Machado, a teoria
e a prática, juntando o seu
lirismo – que
busca, desde
Crisálidas, novos
rumos – à ideia do “instinto
de nacionalidade”, tentando revigorar a vertente indianista
do Romantismo brasileiro,
inaugurada por Gonçalves Dias havia quase
30 anos, e cujo
último estertor
fora Ubirajara, de Alencar,
publicado apenas um
ano antes
de Americanas. Embora temporão,
Americanas não pode
ser ignorado no corpus
da poesia brasileira.
Tivesse sido escrito pelo
menos 20 anos
antes, alguns
de seus poemas
teriam hoje o peso
dos melhores trabalhos
de Gonçalves Dias, mas,
como isso
seria impossível, creditemos o título à última
fase do aprendizado
do autor. Aos 36 anos,
o poeta Machado
de Assis mergulha em si mesmo, mais que no
Brasil, e prepara-se para o grande
voo que, como
poeta, fará nos
25 anos seguintes,
até completar
aquele repertório
que o consagraria em
Ocidentais.
Tal como
Crisálidas, a edição definitiva
de Americanas tem apenas 12 poemas; mas, ao
contrário daquele, da edição original
foi cortado apenas um.
Americanas é composto
de 8 longos poemas
narrativos e mais 4 de curto fôlego, sem espaço para manifestações sentimentais: um
lirismo comedido,
a serviço da ideia que
expressa. Em
outras palavras, o tom
de Americanas é assumidamente épico.
Mesmo o interlúdio
lírico a que
vamos aludir restringe-se à paisagem,
indispensável para
compor o quadro
dos feitos heróicos
que o épico
exige. O título é ambíguo:
pode se referir aos poemas
(“poesias”, como
se dizia então, daí o feminino) e seu
caráter étnico
– sem negar a
nacionalidade brasileira,
mas inserindo o nativo
no continente – ou pode ser
homenagem às fortes
figuras femininas retratadas em seis dos “romances”: Potira, Niâni, Ângela, Sabina, a índia inominada de “Última
jornada” e as donzelas
sacrificadas de “Os Orizes”. Façamos uma breve
leitura dos poemas.
“Potira” – seduzida pelo cristianismo e pela civilização
branca, Potira é sacrificada pelo chefe tamoio
Anajê, a quem fora
prometida. Instaura-se aqui a tensão entre a fé cristã e a violência
nativa, revelando o mal
causado pela intromissão
branca.
“Niâni” – índia da nobreza guaicuru
abandonada pelo marido,
que a trocara por
outra de “sangue
vulgar”, enlouquece, “viúva
sem bem o ser”, até a morte. Chama
a atenção neste poema,
além da linguagem – organizada em quadras e
vazada em redondilhas
e rimas alternadas agudas (B/D) – muito usada por
Gonçalves Dias, a posição
do narrador:
Contam-se histórias antigas
Pelas terras de além-mar,
De moças e de
princesas,
Que amor fazia matar.
(A, p. 173)
“A Cristã-Nova” – passada na época da Inquisição, conta a história de Ângela, que troca o judaísmo pelo cristianismo, para casar-se
com Nuno, herói
do combate aos invasores
franceses. Mas a Inquisição
manda prender
o pai de Ângela, acusando-o de judeu.
Ângela se solidariza com o pai e faz um discurso de conteúdo
judaico, indo presa junto com ele, sendo ambos
deportados. Aqui o choque cultural é mais antigo, mas não menos oportuna
a sua lembrança
e a lembrança de sua
persistente intolerância.
“Sabina” – neste poema
instaura-se a tensão racial:
Sabina, “cativa, não
entrava na senzala, / nem tinha mãos para trabalho
rude” (A, p. 212), 20 anos,
a despertar paixões,
acaba, como em dezenas de outros contos da época, apaixonada
e seduzida pelo “senhor moço”, filho de
seu dono. Sabina engravida, enquanto Otávio prepara-se para casar-se com outra. Desesperada, ela está prestes a suicidar-se, quando “vence o instinto
de mãe”, e ela opta pela
vida – a sua e a do filho
que se engendra em
seu ventre.
“Última
jornada” – construído
em terça
rima, e com paralelos claros entre o episódio dantesco de Paolo e
Francesca, neste poema harmonizam-se,
com perfeição,
forma e conteúdo.
Trata-se da narrativa da jornada de dois amantes – ela
aos céus, ele
aos infernos. Pela
boca do próprio
personagem masculino,
a história dos dois
nos é contada: filhos
de tribos inimigas, eles
se conhecem num raro momento de trégua;
apaixonam-se, fogem e a guerra toma novo fôlego. A moça,
entretanto, passado
o entusiasmo inicial,
cai em profunda
tristeza. Ela
tenta fugir,
mas é alcançada a meio
do caminho pelo
guerreiro, que
a mata. “Talvez,
talvez Tupã...
de cólera tomado” castiga
“a pena maior
que o delito”,
matando o guerreiro.
E nada mais se
viu flutuar nos
ares;
Que ele,
bebendo as lágrimas que
chora,
Na noite entrou dos imortais
pesares,
E ela de todo
mergulhou na aurora.
(A, p. 223)
“Os Orizes” (fragmentos) – projeto
não concluído, faz parte
deste bloco que
trata das mulheres
sacrificadas, pois, ao falar
dos costumes desses índios
que habitavam o sertão
da Bahia, Machado descreve-lhe rituais,
e entre eles:
(...) As donzelas,
Mal saídas da infância, inda
embebidas
Nos ledos jogos de primeira
idade,
Ao brutal sacrifício...
Oh! Cala,
esconde,
Lábio cristão, mais bárbaro costume.
(A, p. 225)
Interlúdio lírico – formado por
dois poemas,
“A flor do embiruçu” e “Lua
nova”, este interlúdio
não é de amorosidade inter-humana, mas uma consagração
à natureza. Se os poemas anteriores exploram os conflitos
religiosos, raciais,
étnicos e humanos,
estes celebram a integração
do homem – independente
de credo, raça
ou nacionalidade
– com a natureza.
Núcleo intelectual – formado pelos
poemas “José Bonifácio”, “A visão de Jaciúca”, “A Gonçalves Dias”
e “Os semeadores”, este
núcleo intelectual
de Americanas tem a chave das ideias
marteladas por
Machado de Assis no todo do livro. Essas
ideias consistem na fundação de uma nação mestiça, onde conviveriam em
paz brancos,
negros e índios,
sob as bênçãos
da Igreja. Devia ser isso o que o Andrada (1763-1838) tinha em mente quando
escreveu:
Quando dentre os nossos reis se alçará um grande legislador, que dê nova
forma ao índio, e ao negro? Que lhes dê o pleno gozo dos frutos do seu
trabalho, e a liberdade civil, que depende da educação moral e intelectual do
povo? (ANDRADA E SILVA, p. 64)
Claro que ele
pressupunha, em troca, a destruição das culturas, a começar pela língua, e o
banimento dos “costumes bárbaros”.
“José Bonifácio” não louva o Patriarca
da Independência, mas
o pensador que
propunha uma reforma na sociedade nacional, com o
fim da escravidão
e a integração de negros
e índios à sociedade.
Objetivamente, a mestiçagem
era o caminho
para uma raça brasileira, dotada de homogeneidade
cultural. “A visão de Jaciúca” complementa, de maneira
cruel, o pensamento do Andrada: às vésperas de uma batalha
(com brancos?),
o guerreiro Jaciúca, “o duro chefe da indomável tribo”, tem uma visão em que “era o termo da vida que chegara / ao povo
de Tupã (...) Luas
e luas volverão no espaço
/ antes da morte,
mas a morte é
certa, / e terrível
será.”. Outra nação
se erguerá sobre as ruínas
da nação de Jaciúca, “e brilhará na terra, / gloriosa e rica”, por isso ele
implora aos seus irmãos:
“penduremos / as armas nossas, que sobeja há
sido / a glória, e a doce paz que nos chama.” (A, p. 200-205). “A Gonçalves Dias” é uma elegia ao mentor intelectual
de Americanas, o “cantor da América”, morto
em um
naufrágio, 11 anos
antes. “Os semeadores”,
por fim,
homenageia os jesuítas que, “Paulos do sertão”,
semearam o cristianismo entre os “bárbaros”.
É importante
citar a disposição gráfica utilizada por
Machado, que
vem sustentar nossa leitura: os três
primeiros poemas
são as tragédias
“Potira”, “Niâni” e “A Cristã-Nova”. Em seguida, vêm os quatro
poemas que
denominamos de “núcleo intelectual” do livro, seguidos pelos
poemas do “interlúdio lírico”. O livro continua com
mais três
“romances”: o drama
de Sabina, seguido pela fábula dantesca
de “Última jornada”, para
encerrar-se com a alusão
ao sacrifício das donzelas
orizes. Há, portanto, uma intenção prévia nesse modo de organizar os textos.
Parece-me, entretanto, que Machado
comete um pecadilho nessa organização ao
optar, burocraticamente, em
deixar os fragmentos
por último, como se fossem dispensáveis
e apenas uma peça
a mais no engenho
do livro. Essa opção
quebra a organização
final pensada em
Crisálidas
(o inovador “Versos
a Corina” seguido pelo sugestivo “Última folha”)
e em Falenas
(onde a última
parte traz as inovações
simbolistas e parnasianas, concluindo com
a experimentação narrativa de “Pálida Elvira”). A intervenção
divina e moralista no castigo ao infrator,
a confessa alusão ao filósofo Montaigne,
que dividia as almas
dos índios entre
boas e más, e o intertexto dantesco do sublime casamento entre forma e conteúdo
alcançado em “Última jornada”, talvez
a mais bela
criação poética
de Machado de Assis, seria o fecho ideal para este livro singular que é Americanas.
Machado confirma, nos
textos que
têm o índio como
protagonista, o que Antônio Paulo Graça
sistematizaria 120 anos depois: os heróis
índios – épicos
ou trágicos
– não sobrevivem nunca
porque estão fadados ao extermínio:
Todo romance indianista é, já podemos dizer, uma metáfora do
genocídio. (GRAÇA, p. 149)
Em síntese,
a ideia em Machado
de Assis, servindo-se do caminho aberto por Gonçalves Dias, é que a destruição da cultura
nativa é inevitável,
sendo o mais sensato
seguir o caminho
proposto pelo Andrada, e fundar,
sobre as cinzas do genocídio,
uma grande nação
mestiça, onde,
certamente, prevalecerão o cristianismo e a cultura
europeia, suportes da única ideia de civilização
aceitável.