Amigos do Fingidor

sexta-feira, 24 de março de 2023

Machado de Assis, poeta 3/4


Zemaria Pinto

 

IV

Americanas, de 1875, vem conjugar, no espírito experimentalista de Machado, a teoria e a prática, juntando o seu lirismoque busca, desde Crisálidas, novos rumos – à ideia do “instinto de nacionalidade”, tentando revigorar a vertente indianista do Romantismo brasileiro, inaugurada por Gonçalves Dias havia quase 30 anos, e cujo último estertor fora Ubirajara, de Alencar, publicado apenas um ano antes de Americanas. Embora temporão, Americanas não pode ser ignorado no corpus da poesia brasileira. Tivesse sido escrito pelo menos 20 anos antes, alguns de seus poemas teriam hoje o peso dos melhores trabalhos de Gonçalves Dias, mas, como isso seria impossível, creditemos o título à última fase do aprendizado do autor. Aos 36 anos, o poeta Machado de Assis mergulha em si mesmo, mais que no Brasil, e prepara-se para o grande voo que, como poeta, fará nos 25 anos seguintes, até completar aquele repertório que o consagraria em Ocidentais. Tal como Crisálidas, a edição definitiva de Americanas tem apenas 12 poemas; mas, ao contrário daquele, da edição original foi cortado apenas um.

Americanas é composto de 8 longos poemas narrativos e mais 4 de curto fôlego, sem espaço para manifestações sentimentais: um lirismo comedido, a serviço da ideia que expressa. Em outras palavras, o tom de Americanas é assumidamente épico. Mesmo o interlúdio lírico a que vamos aludir restringe-se à paisagem, indispensável para compor o quadro dos feitos heróicos que o épico exige. O título é ambíguo: pode se referir aos poemas (“poesias”, como se dizia então, daí o feminino) e seu caráter étnicosem negar a nacionalidade brasileira, mas inserindo o nativo no continente – ou pode ser homenagem às fortes figuras femininas retratadas em seis dos “romances”: Potira, Niâni, Ângela, Sabina, a índia inominada de “Última jornada” e as donzelas sacrificadas de “Os Orizes”. Façamos uma breve leitura dos poemas.

“Potira” – seduzida pelo cristianismo e pela civilização branca, Potira é sacrificada pelo chefe tamoio Anajê, a quem fora prometida. Instaura-se aqui a tensão entre a cristã e a violência nativa, revelando o mal causado pela intromissão branca.

“Niâni” – índia da nobreza guaicuru abandonada pelo marido, que a trocara por outra de “sangue vulgar”, enlouquece, “viúva sem bem o ser”, até a morte. Chama a atenção neste poema, além da linguagem – organizada em quadras e vazada em redondilhas e rimas alternadas agudas (B/D) – muito usada por Gonçalves Dias, a posição do narrador:

 

Contam-se histórias antigas

Pelas terras de além-mar,

De moças e de princesas,

Que amor fazia matar.

(A, p. 173)

 

“A Cristã-Nova” – passada na época da Inquisição, conta a história de Ângela, que troca o judaísmo pelo cristianismo, para casar-se com Nuno, herói do combate aos invasores franceses. Mas a Inquisição manda prender o pai de Ângela, acusando-o de judeu. Ângela se solidariza com o pai e faz um discurso de conteúdo judaico, indo presa junto com ele, sendo ambos deportados. Aqui o choque cultural é mais antigo, mas não menos oportuna a sua lembrança e a lembrança de sua persistente intolerância.

“Sabina” – neste poema instaura-se a tensão racial: Sabina, “cativa, não entrava na senzala, / nem tinha mãos para trabalho rude” (A, p. 212), 20 anos, a despertar paixões, acaba, como em dezenas de outros contos da época, apaixonada e seduzida pelosenhor moço”, filho de seu dono. Sabina engravida, enquanto Otávio prepara-se para casar-se com outra. Desesperada, ela está prestes a suicidar-se, quando “vence o instinto de mãe”, e ela opta pela vida – a sua e a do filho que se engendra em seu ventre.

Última jornada” – construído em terça rima, e com paralelos claros entre o episódio dantesco de Paolo e Francesca, neste poema harmonizam-se, com perfeição, forma e conteúdo. Trata-se da narrativa da jornada de dois amantesela aos céus, ele aos infernos. Pela boca do próprio personagem masculino, a história dos dois nos é contada: filhos de tribos inimigas, eles se conhecem num raro momento de trégua; apaixonam-se, fogem e a guerra toma novo fôlego. A moça, entretanto, passado o entusiasmo inicial, cai em profunda tristeza. Ela tenta fugir, mas é alcançada a meio do caminho pelo guerreiro, que a mata. “Talvez, talvez Tupã... de cólera tomado” castiga “a pena maior que o delito”, matando o guerreiro.

 

E nada mais se viu flutuar nos ares;

Que ele, bebendo as lágrimas que chora,

Na noite entrou dos imortais pesares,

 

E ela de todo mergulhou na aurora.

(A, p. 223)

 

“Os Orizes” (fragmentos) – projeto não concluído, faz parte deste bloco que trata das mulheres sacrificadas, pois, ao falar dos costumes desses índios que habitavam o sertão da Bahia, Machado descreve-lhe rituais, e entre eles: 

 

(...) As donzelas,

Mal saídas da infância, inda embebidas

Nos ledos jogos de primeira idade,

Ao brutal sacrifício... Oh! Cala, esconde,

Lábio cristão, mais bárbaro costume.

(A, p. 225)

 

Interlúdio lírico – formado por dois poemas, “A flor do embiruçu” e “Lua nova”, este interlúdio não é de amorosidade inter-humana, mas uma consagração à natureza. Se os poemas anteriores exploram os conflitos religiosos, raciais, étnicos e humanos, estes celebram a integração do homemindependente de credo, raça ou nacionalidadecom a natureza.

Núcleo intelectual – formado pelos poemas “José Bonifácio”, “A visão de Jaciúca”, “A Gonçalves Dias” e “Os semeadores”, este núcleo intelectual de Americanas tem a chave das ideias marteladas por Machado de Assis no todo do livro. Essas ideias consistem na fundação de uma nação mestiça, onde conviveriam em paz brancos, negros e índios, sob as bênçãos da Igreja. Devia ser isso o que o Andrada (1763-1838) tinha em mente quando escreveu:

 

Quando dentre os nossos reis se alçará um grande legislador, que dê nova forma ao índio, e ao negro? Que lhes dê o pleno gozo dos frutos do seu trabalho, e a liberdade civil, que depende da educação moral e intelectual do povo? (ANDRADA E SILVA, p.  64)

 

Claro que ele pressupunha, em troca, a destruição das culturas, a começar pela língua, e o banimento dos “costumes bárbaros”.

“José Bonifácio” não louva o Patriarca da Independência, mas o pensador que propunha uma reforma na sociedade nacional, com o fim da escravidão e a integração de negros e índios à sociedade. Objetivamente, a mestiçagem era o caminho para uma raça brasileira, dotada de homogeneidade cultural. “A visão de Jaciúca” complementa, de maneira cruel, o pensamento do Andrada: às vésperas de uma batalha (com brancos?), o guerreiro Jaciúca, “o duro chefe da indomável tribo”, tem uma visão em queera o termo da vida que chegara / ao povo de Tupã (...) Luas e luas volverão no espaço / antes da morte, mas a morte é certa, / e terrível será.”. Outra nação se erguerá sobre as ruínas da nação de Jaciúca, “e brilhará na terra, / gloriosa e rica”, por isso ele implora aos seus irmãos: “penduremos / as armas nossas, que sobeja há sido / a glória, e a doce paz que nos chama.” (A, p. 200-205). “A Gonçalves Dias” é uma elegia ao mentor intelectual de Americanas, o “cantor da América”, morto em um naufrágio, 11 anos antes. “Os semeadores”, por fim, homenageia os jesuítas que, “Paulos do sertão”, semearam o cristianismo entre os “bárbaros”.

É importante citar a disposição gráfica utilizada por Machado, que vem sustentar nossa leitura: os três primeiros poemas são as tragédias “Potira”, “Niâni” e “A Cristã-Nova”. Em seguida, vêm os quatro poemas que denominamos de “núcleo intelectual” do livro, seguidos pelos poemas do “interlúdio lírico”. O livro continua com mais trêsromances”: o drama de Sabina, seguido pela fábula dantesca de “Última jornada”, para encerrar-se com a alusão ao sacrifício das donzelas orizes. Há, portanto, uma intenção prévia nesse modo de organizar os textos. Parece-me, entretanto, que Machado comete um pecadilho nessa organização ao optar, burocraticamente, em deixar os fragmentos por último, como se fossem dispensáveis e apenas uma peça a mais no engenho do livro. Essa opção quebra a organização final pensada em Crisálidas (o inovadorVersos a Corina” seguido pelo sugestivo “Última folha”) e em Falenas (onde a última parte traz as inovações simbolistas e parnasianas, concluindo com a experimentação narrativa de “Pálida Elvira”). A intervenção divina e moralista no castigo ao infrator, a confessa alusão ao filósofo Montaigne, que dividia as almas dos índios entre boas e más, e o intertexto dantesco do sublime casamento entre forma e conteúdo alcançado em “Última jornada”, talvez a mais bela criação poética de Machado de Assis, seria o fecho ideal para este livro singular que é Americanas.

Machado confirma, nos textos que têm o índio como protagonista, o que Antônio Paulo Graça sistematizaria 120 anos depois: os heróis índiosépicos ou trágicosnão sobrevivem nunca porque estão fadados ao extermínio:

 

Todo romance indianista é, já podemos dizer, uma metáfora do genocídio. (GRAÇA, p. 149)

 

Em síntese, a ideia em Machado de Assis, servindo-se do caminho aberto por Gonçalves Dias, é que a destruição da cultura nativa é inevitável, sendo o mais sensato seguir o caminho proposto pelo Andrada, e fundar, sobre as cinzas do genocídio, uma grande nação mestiça, onde, certamente, prevalecerão o cristianismo e a cultura europeia, suportes da única ideia de civilização aceitável.