Amigos do Fingidor

sexta-feira, 3 de março de 2023

O lado avesso de Machado de Assis 5/5

 Zemaria Pinto

 

O dramaturgo. A dramaturgia de Machado de Assis não obteve a mesma aceitação crítica que os demais gêneros. A comparação com os contemporâneos Arthur Azevedo e José de Alencar joga uma sombra sobre o teatro de Machado, feito, segundo observação de seu amigo Quintino Bocaiúva, anotada por Mário de Alencar, para ser lido e não representado.[1] A avaliação que faço hoje é que Machado procurava se firmar como autor, buscava furar o bloqueio do público, e o teatro era uma maneira rápida de chegar ao grande público. Nem todas as peças a ele atribuídas, cerca de 15, segundo alguns autores, nos chegaram. Estão acessíveis apenas:

 

. Desencantos (1861)

. O caminho da porta (1862)

. O protocolo (1862)

. Quase ministro (1862)

. Os deuses de casaca (1865)

. Tu , tu, puro amor... (1880)

. Não consultes médico (1896)

. Lição de botânica (1906)

 

Se dermos o desconto de que Tu , tu, puro amor... foi escrita de encomenda, observamos que a maior parte da produção dramática de Machado de Assis coincide com a fase romântica de sua ficção. Trata-se, entretanto, de um romantismo amargo, crítico, em que o romântico quase sempre perde para o realista – ou melhor, para o racional. E, pelo menos nas três primeiras peças, é uma mulher que mantém a racionalidade. O teatro de Machado é uma transição, uma ponte, entre o romantismo e o realismo, mas, a bem da verdade, o lampejo do grande criador passa ao largo das peças, de temas simplórios e personagens mal desenvolvidos. São peças ligeiras – quase sempre comédias, de um ato, apenas –, o que era muito comum à época. E não se espante com a profusão de viúvas: se disse que a Guerra do Paraguai foi a principal fornecedora de viúvas que aparecem assiduamente na obra de Machado. Podemos falar também das condições insalubres, as quais os homens se expunham mais. Masum outro aspecto, mais sutil: as viúvas são mulheres que passaram do estágio da ingenuidade, são vividas, liberais, donas de seu próprio nariz. Isto é, são independentes e não carregam o peso do pecado original... O autor sente-se mais à vontade com elas, podendo moldá-las de acordo com a necessidade dramática, sem levantar dúvidas mais azedas quanto à honestidade e à moral das personagens.    

Desencantos.[2] Luís de Melo, jovem sonhador, e Pedro Alves, ambos ricos e sem o que fazer na vida, disputam Clara, viúva, rica e... Esta opta pelo segundo; os dois se casam e Melo vai para o Oriente. Passados cinco anos, o casal vive o inferno cotidiano a dois. Alves tornara-se deputado e Clara, que se acostumara à independência de viúva rica, parece um modelo primitivo de feminista, mas, para manter as aparências, os dois fazem um pacto de convivência. Melo volta ao Rio de Janeiro e começa a frequentar a casa. nãomais resquício da antiga paixão. Melo e Alves, que antes viviam trocando farpas, tornam-se amigos. Melo apaixona-se pela filha de Clara, que tem o mesmo nome. O novo romance influencia na reconciliação do casal. Uma fala de Alves refere-se ao agonizante Romantismo, representado por Melo:

 

– Acabou o reinado das baladas e da pasmaceira, para dar lugar ao império dos homens de juízo e dos espíritos sólidos.

 

O caminho da porta.[3] Valentim e Inocêncio, dois românticos incorrigíveis, disputam a viúva Carlota. Os nomes dos homens refletem suas personalidades: Valentim sonha com os heróis antigos, que salvavam mocinhas, enquanto Inocêncio é um nefelibata. Fazendo às vezes de “consciência” de ambos, o Dr. Cornélio, que fora pretendente de Carlota, é o espírito racional da trama. Carlota manipula os dois pretendentes, divertindo-se com eles. Ao final, Cornélio consegue afastar a ambos os pretendentes, deixando a fútil Carlota sozinha, recebendo com isso umcastigopelo seumau comportamento”. Uma fala do desiludido Valentim a Carlota resume bem o tom amargo da peça:

 

– Ignora que o amor é uma invenção humana! Os homens, que inventaram tanta coisa, inventaram também esse sentimento. Para dar justificação moral à união dos sexos inventou-se o amor, como se inventou o casamento para dar-lhe justificação legal. Eis o que é o amor!

 

O protocolo.[4] O casal Elisa e Pinheiro vive os primeiros cansaços do casamento. Venâncio Alves, um galanteador, de palavra fácil e rebuscada, não perde oportunidade de atrapalhar ainda mais o relacionamento do casal. Lulu, prima de Elisa, mocinha romântica, percebe o objetivo de Venâncio e trama, racionalmente, para que o casal se reconcilie e o estranho desapareça de suas vidas. A ameaça de adultérioum horror para a época – é dissipada graças a uma intervenção que não assegura, entretanto, que o casalcontinuar se entendendo. Racional, sim, mas sem perder a aura de sonhadora, Lulu seria o protótipo de Machado para a mulher dos tempos que se anunciavam?

Quase ministro.[5] É a peça mais atual de Machado, não pela forma, ou por qualquer invenção, mas pelo tema: conta a história do deputado Luciano Martins, cotadíssimo para assumir um ministério pela manhã, tornado ex-quase-ministro pela tarde. Desfia-se um autêntico cordão de puxa-sacos: um jornalista, um poeta, um inventor, um empresário de teatro lírico e até um bajulador profissional, que tem compadres ministros ou ex-ministros.

Os deuses de casaca.[6] Do ponto de vista literário, é a mais rica das peças de Machado de Assis. Escrita em alexandrinos, a peça faz descer ao Rio de Janeiro um concílio de deuses olímpicos, buscando adaptar-se à nova realidade da vida urbana, que o monte Olimpo perdera o prestígio de outrora. Inspirados por Cupido, o Amor, o primeiro a tornar-se mortal, eles vão, aos poucos, aceitando a nova condição. Apolo, o protetor da poesia, depois de perder Pégaso para um grupo de poetas enlouquecidos, torna-se crítico literário. Marte, o deus da guerra, funda um jornal, tendo Mercúrio, o mensageiro, como colaborador “na intriga e no recado”. Vulcano, o forjador, fará, para o melhor desempenho deles, “penas de aço”. Proteu, pela facilidade que tem de tomar diferentes formas, torna-se político.

 

– Vou ter segura a vida e o futuro. O talento

Está em não mostrar a mesma cara ao vento.

Vermelho de manhã, sou de tarde amarelo.

Se convier sou bigorna, e se não, sou martelo.

 

Júpiter, por fim, vira... banqueiro. O curioso é que nãopersonagens femininos, pois todas as deusas optaram por se tornarem humanas, acompanhando os desígnios do Amor. Machado fala pela boca de Apolo: a amada deste, Juno, mudara de nome para Corina, nome pelo qual Machado identificava uma de suas musas, que merecera, em Crisálidas,[7] um longo poema, onde pela primeira vez ele usou o metro alexandrino.

Tu , tu, puro amor...[8] Classificada como comédia, mas com um desfecho nada cômico, foi escrita especialmente para celebrar os 300 anos de morte de Camões. A peça conta a história de amor entre o poeta e a jovem Catarina de Ataíde, negada em casamento a Camões, tido como vagabundo e arruaceiro. Eles, entretanto, continuam a se encontrar, clandestinamente. Mas, como em sociedade tudo se sabe, o pai de Catarina trama junto a El-rei para que Camões seja desterrado para a África, ficando Catarina livre para casar-se segundo a vontade paterna.

Não consultes médico.[9] Apesar do enredo tolo e inverossímil, esta comédia, escrita na maturidade, é muito divertida, especialmente por seus diálogos de corte preciso. D. Leocádia é uma simpática viúva que se acredita uma espécie pré-freudiana, sempre pronta a receitar remédios certeiros para tristezas crônicas. O casal Adelaide, sobrinha de D. Leocádia, e Magalhães, diplomata de carreira, por exemplo, foi unido graças às artes terapêuticas de D. Leocádia. Carlota, filha de D. Leocádia e prima de Adelaide, sofreu um revés de amor por um tal Rodrigues, “capitão de engenharia, que casou com uma viúva espanhola”. Como o casal Adelaide-Magalhães está de mudança para a Grécia, D. Leocádia achou o remédio para a filha: Carlota vai morar com eles no distante e mítico país. O casal, que via naquela temporada grega uma segunda lua-de-mel, conforma-se com a situação, mas entra em cena um inacreditável Cavalcante, amigo de Magalhães, um espírito absurdamente romântico, como nem o mais radical dos tardios autores daquela escola seria capaz de imaginar. Mas é exatamente esse absurdo que é engraçado. D. Leocádia receita-lhe, para curar a tristeza que se confunde com parvoíce (ou vice-versa), passar 10 anos na China, pregando aos infiéis, uma vez que Cavalcante pretendia entrar para um convento. Entretanto, o contato entre Carlota e Cavalcante provoca uma revolução na tristeza de ambos; eles se apaixonam e todos ficam felizes.

Lição de botânica.[10] O barão Sigismundo de Kernoberg, botânico, tenta dissuadir D. Leonor a não permitir o namoro entre Henrique, sobrinho do barão, e Cecília, sobrinha de D. Leonor. Acontece que o barão tem reservado para o rapaz a glória das ciências, para a qual o celibato seria indispensável. Helena, jovem viúva, irmã de Cecília, faz-se de interessada em botânica e o barão aceita-a como discípula. O barão apaixona-se por Helena e termina por concordar com o romance entre Henrique e Cecília.

 

Concluindo. Este é Machado de Assis na sua face menos divulgada, mas necessária à sua consolidação como escritor profissional: dramaturgo de poucos recursos; cronista impetuoso, porém preso ao cotidiano não literário; tradutor ousado; crítico exigente e destemido; ensaísta original e, por vezes, surpreendente. Não fosse o bom poeta e o contista e romancista sem par, o seu lado avessoeste outro lado, que buscamos mostrar – não seria suficiente para tê-lo como um nome de ponta da literatura de língua portuguesa. Divago. A parte não existe sem o todo; o todo não existe sem a parte. E Machado de Assis, ao longo de 50 anos de aprendizagem e experimento, constrói uma obra essencialmente humana – que cresce e amadurece sem arroubos de gênio, mas com a perenidade do bronze.

 

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

 

MACHADO DE ASSIS. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1997.

. Balas de estalo & crítica

. Crisálidas, Falenas & Americanas

. Crítica & Variedades

. O Almada & Outros poemas

. Páginas Recolhidas

. Teatro

 

BIBLIOGRAFIA DE APOIO

 

BOSI, Alfredo et alii. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982. 

ECLESIASTES. In: Bíblia Sagrada. 10. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1996. p. 785-798.

POE, Edgar Allan. “O Corvo” e suas traduções. Org. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Lacerda, 1998.

TEIXEIRA, Ivan. Apresentação de Machado de Assis. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.



[1] Teatro, p. 4.

[2] Teatro, p. 7-43.

[3] Teatro, p. 45-70.

[4] Teatro, p. 71-93.

[5] Teatro, p. 95-120.

[6] Teatro, p. 121-166.

[7] Crisálidas, p. 18-29.

[8] Teatro, p. 167-197.

[9] Teatro, p. 199-221.

[10] Teatro, p. 223-248.