Amigos do Fingidor

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação 2/8

 

Zemaria Pinto

 

Marañon, o rio de Orellana. Ali se iniciava a etapa mais importante da aventura. Eram os últimos dias de 1541. Dez meses já se passavam desde que saíram de casa. Após nove dias de viagem, e apesar dos esforços do Capitão em animar a tropa, o que Carvajal observa amiúde, a situação chega a um ponto crítico:

 

Estávamos em grande perigo de morrer da grande fome que padecíamos e assim, buscando o conselho do que se devia fazer, comentando a nossa aflição e trabalhos, resolveu-se que escolhêssemos de dois males aquele que ao Capitão e a todos nós parecia o menor, e foi ir por diante, seguindo o rio: ou morrer ou ver o que nele havia, confiando em Nosso Senhor que se serviria por bem conservar as nossas vidas até ver o nosso remédio. À falta de outros mantimentos, entretanto, chegamos a tal extremo que só comíamos couros, cintas e solas de sapatos cozidos com algumas ervas, de maneira que era tal a nossa fraqueza, que não nos podíamos ter em pé. (p. 19)

 

Observe-se neste fragmento o espírito solidário do Capitão, que, sem abrir mão de sua autoridade, discute com seus comandados qual a melhor decisão para todos. Em paralelo, o discurso religioso pontua a narrativa. É importante assinalar uma recorrência do relato: a fome. Não caçavam; não pescavam; esperavam encontrar povoações que pudessem saquear. No dia 08 de janeiro ocorre o primeiro contato com os nativos, de índole pacífica. Neste ponto, tomamos conhecimento de uma habilidade de Orellana, ainda insuspeita, que será muito útil em toda a viagem: sua extraordinária capacidade de comunicar-se nas línguas nativas. A formação discursiva é repetida diversas vezes, com pouca variação. Alguns exemplos:

 

Avistando-os o Capitão, pôs-se na barranca do rio e, na sua língua, pois um pouco os entendia, começou a falar com eles e a dizer que não tivessem temor e que se chegassem, que lhes queria falar. (p. 22)

 

Agradeceu-lhes o Capitão e lhes deu aquilo que tinha, e depois de o ter dado, ficaram os índios muito contentes em ver o bom tratamento que se lhes fazia, assim como em ver que o Capitão lhes entendia a língua, que não foi pouco para que saíssemos a porto de salvamento, pois se os não entendesse teríamos por muito difícil a nossa saída. (p. 28)

 

O entender o Capitão a sua língua foi, depois de Deus, o que nos ajudou a não ficarmos no rio. (p. 29)

 

Essa virtude fora concedida aos discípulos de Cristo, conforme Marcos (16, 14-18).[1] Não podemos ignorar o possível intertexto, até porque Carvajal não perde oportunidade de aproximar o Capitão da divindade:

 

E a não ser ele tão sábio nas coisas da guerra, que parecia que Nosso Senhor lhe ensinava o que devia fazer, muitas vezes nos teriam morto. (p. 54)

 

Reunindo os treze chefes locais, o Capitão “lhes falou longamente da parte de Sua Majestade, e em seu nome tomou posse da terra” (p. 23). Duas observações: “falou longamente” e “tomou posse da terra”. Para Greenblatt, a tomada de posse é a “execução de um conjunto de atos linguísticos: declarar, testemunhar, registrar” (GREENBLATT, p. 81). Qual o nível de entendimento dos nativos? Continuariam pacíficos se entendessem o palavreado do Capitão? Com que direito Orellana, com sua mera presença, tomava posse de áreas ocupadas há centenas, quiçá milhares, de anos?  É claro que, para o narrador, aquele era sobretudo um ato simbólico, representando o estender o manto real sobre aquela terra agreste, habitada por gente bárbara, dando início ao processo civilizatório. Poderia acrescentar, como Colombo, em situação semelhante: “y no me fué contradicho” (GREENBLATT, p. 75).

Logo nesse primeiro contato com os nativos, Carvajal começa a preparar o espírito do leitor, para o que será o ponto mais alto de sua narrativa:

 

Aqui nos deram notícia das amazonas e das riquezas que há mais abaixo, e quem o fez foi um índio chamado Aparia, velho que dizia ter estado naquela terra, e também nos deu notícia de outro senhor que estava apartado do rio, metido terra adentro, e que ele dizia possuir enorme riqueza de ouro. (p. 24)

 

Amazonas à parte, a “enorme riqueza de ouro” era o argumento definitivo para que seguissem em frente, pois era um indício do El Dorado. O capitão ordena então que se dê início à construção de um novo bergantim. A propósito destes – os dois completariam a viagem –, Carvajal os nomeia apenas como bergantim pequeno e bergantim grande, mas, por outras relações, sabe-se que se chamavam San Pedro e Victoria (p. 74, em nota do tradutor).  

Após a decisão de seguir em frente, até o mar, Orellana intenta mandar um grupo dar notícias a Pizarro. Consegue apenas três voluntários, “porque todos temiam a morte que lhes parecia certa” (p. 26). Carvajal não fala mais desse empreendimento que tanto destaca a lealdade de seu Capitão. Teriam os emissários logrado êxito ou perderam-se no caminho?

Naquela primeira parada, da qual saíram somente a 02 de fevereiro (“dia de Nossa Senhora da Candelária”, segundo Carvajal), a expedição ainda estava no rio Napo. Oviedo, cuja narrativa – construída a partir do texto de Carvajal e das oitivas do próprio Orellana e de outros participantes da aventura – complementa alguns lapsos do dominicano, informa, dando voz a um narrador implícito, que a 12 de fevereiro

 

Se juntaron dos ríos con el río de nuestra navegación y eran grandes, em especial el que entro a la mano diestra, como veníamos el água abajo: el cual deshacía e señoreaba todo el outro río e parecía que le consumía en sí; porque venía tan furioso e con tan grand avenida, que era cosa de mucha grima y espanto ver tanta palicada de árboles e madera seca como traía, que pusiera grandísimo temor mirarle desde la tierra, cuanto más andando por él. (BARLETTI, p. 8)

 

Era o rio Marañon, que, na região peruana, já havia sido assim nominado. A única referência que Carvajal faz a esse nome é no antepenúltimo parágrafo de seu texto, mas não deixa nenhuma dúvida quanto a ser o mesmo rio aquele que deságua no Atlântico, que ele, a partir do título de sua relação, intenta mudar de nome para rio de Orellana.

No segundo contato com nativos ainda pacíficos, Carvajal narra uma passagem que precisa ser observada com mais detalhes, pelo que guarda de inverossímil:

 

Vendo o Capitão o bom comedimento do senhor, fez-lhe um discurso, dando-lhe a entender como éramos cristãos e adorávamos um só Deus, que era criador de todas as coisas criadas, e que não éramos como eles, que andavam errados, adorando pedras e ídolos feitos. Disse-lhes sobre este assunto muitas outras coisas e também lhes disse como éramos criados e vassalos do Imperador dos cristãos, grande rei de Espanha, chamado D. Carlos, nosso senhor, de quem era o império de todas as Índias e outros muitos senhorios e reinos que há pelo mundo e que por ordem sua íamos àquelas terras, devendo dar contas do que aí tínhamos visto. (p. 29-30)

 

O discurso de Orellana é repleto de conceitos que certamente não fazem parte do repertório linguístico-ideológico dos seus interlocutores. Pensemos no esquema clássico da comunicação, o mais simples de todos:

 

emissor => mensagem => receptor

 

A possibilidade das ideias veiculadas por Orellana se perderem ou se desvirtuarem antes de chegarem aos receptores – ainda que tivesse fluência na língua – é imensa, porque falta a estes o aparato linguístico para a compreensão de conceitos como cristãos, deus, criador, erro, ídolo, vassalos, imperador, Espanha, Índias, reino.  

A expedição segue rio abaixo, alternando momentos de paz e fartura com batalhas encarniçadas e muita fome, até chegar ao Atlântico no dia 26 de agosto de 1542, e a Nova Cádiz, na ilha de Cubágua, Venezuela, a 11 de setembro.

Como nosso propósito não é parafrasear o texto de Carvajal, mas apontar-lhe as camadas discursivas, especialmente a religiosa e a ideológica, com ênfase nesta última, redirecionemos o trabalho para essas camadas, alertando que, entretanto, o contexto histórico estará imbricado, com maior ou menor valor, nas passagens comentadas a seguir.

 



[1] (...) “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. (...) Os sinais que acompanharão os que crerem serão estes: (...) falarão línguas novas (...).” (BÍBLIA SAGRADA, p. 1.234)