Amigos do Fingidor

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação 4/8

Zemaria Pinto

 

Hiperbólico, maravilhoso. Para atingir o âmago do maravilhoso, o maravilhoso puro – aliás, negado por Le Goff (p. 25) –, Tzvetan Todorov identifica vários tipos de narrativas onde o maravilhoso se sobressai.[1] A narrativa de Carvajal encaixa-se a perfeição naquilo que o teórico chama de “maravilhoso hiperbólico”, onde “os fenômenos não são sobrenaturais, a não ser por suas dimensões, superiores a que nos são familiares” (TODOROV, 1992, p. 60). Por outro lado, a decisão de inflar a realidade pode ser apenas um reflexo linguístico do espanto, inconsciente, ou uma decisão consciente, que podemos atribuir a uma categoria de criação literária: o devaneio, a fantasia produzida em estado de vigília.

 

O devaneio é uma atividade onírica na qual subsiste uma clareza de consciência. O sonhador de devaneio está presente no seu devaneio. Mesmo quando o devaneio dá a impressão de uma fuga para fora do real, para fora do tempo e do lugar, o sonhador do devaneio sabe que é ele que se ausenta – é ele, em carne e osso, que se torna um “espírito”, um fantasma do passado ou da viagem. (BACHELARD, p. 144)

 

 Não se trata de matéria de ficção, pois, mas sim de uma manipulação consciente da realidade; em nosso caso, histórica.

O maravilhoso hiperbólico aliado ao devaneio ocorre no texto inúmeras vezes, de sorte que vamos nos ater a um ponto que tem sido motivo de polêmica desde sempre: o superpovoamento de algumas áreas do rio Amazonas, apontado por Carvajal, mas jamais comprovado, embora alguns autores considerem que a presença do europeu na região foi o estopim de um autêntico genocídio. Comparada com a baixíssima densidade populacional que conhecemos hoje, as margens do Amazonas vistas por Carvajal parecem resultantes de um devaneio do autor. O surgimento dessa área de grande população associa-se às maiores dificuldades bélicas encontradas pela expedição, numa equação simples, mas perfeita: mais gente, maior resistência.

Antes, vejamos uma hipérbole carregada de conteúdo ideológico, na construção do heroísmo de Orellana, cometida logo no segundo encontro com os nativos pacíficos:

 

Mas era Nosso Senhor servido que se fizesse tão grande descobrimento e que o mesmo viesse ao conhecimento da Cesárea Majestade. Por outra via nem força ou poderio humano seria possível este descobrimento, que com tanta dificuldade se realizava, sem nele por Deus a sua mão ou sem que se passassem muitos séculos. (p. 29)

 

Por vias transversas, Carvajal atribui o sucesso da expedição a um milagre, sem o qual “muitos séculos” se passariam para que o Marañon, ou o Amazonas, fosse navegado até a sua foz. O exagero vai por conta do conhecimento de Carvajal das lendas em torno do El Dorado, o que tornava apenas uma questão de tempo o “descobrimento”.

Nas “províncias” governadas por Machiparo, onde aportam a 12 de maio, e onde começam verdadeiramente os conflitos com os nativos, Carvajal dá conta de grandes populações:

 

Este Machiparo está assentado em uma lomba sobre o mesmo rio e possui muitas e grandíssimas povoações, que reúnem cinquenta mil homens, entre os trinta e os setenta anos, porque os mais jovens não vão a guerra. (...) A umas duas léguas desse povo vimos estar alvejando as aldeias, e não tínhamos andado muito quando vimos vir rio acima enorme quantidade de canoas, todas aprestadas para a guerra, airosas e com seus paveses, que são de carapaças de lagartos e de couros de manatis[2] e antas, da altura de um homem, pois os cobrem inteiramente. (...) Nossos companheiros mostravam tanta coragem que lhes parecia que não bastavam para cada qual mil índios. (p. 37-38)

 

Chama a atenção, além da grande quantidade de nativos, a maneira como se organizam para a guerra com escudos que cobrem o corpo inteiro. As “carapaças de lagartos” seriam uma referência ao nosso jacaré? Carvajal desconhecia o crocodilo? Na descrição da batalha, mesmo usando armas tecnicamente mais avançadas, a superioridade numérica, um para mil, é, claramente, força de expressão, um exagero linguístico.

 

Foi o alferes e correu meia légua pela aldeia adentro (...) Visto pelo alferes o tamanho da aldeia e a população (...) Disse-lhe tudo o que acontecera e como havia grande quantidade de comida, tanto tartarugas nos currais e tanques, como muita carne, peixe e biscoitos, tudo em tal abundância que daria para sustentar um batalhão de mil homens durante um ano. (...) Tratou Cristobal Maldonado de recolher a comida e tendo já apanhado mais de mil tartarugas (...) porque os índios eram mais de dois mil e os companheiros de Maldonado não eram mais que dez, tendo muito que lutar para se defenderem. (p. 39)

 

Novamente, pilhamos nosso narrador cometendo o pecado da hipérbole: como poderia Maldonado, sozinho, ter “apanhado mais de mil tartarugas”? Toda a comida ali saqueada, aliás, se coubesse nos bergantins, poderia sustentá-los até o final da viagem; mas ainda passariam muita fome. “Meia légua aldeia adentro” significa que, da margem do rio para dentro a aldeia tem mais de três quilômetros e meio de extensão, maior que a maioria das cidades da região, atualmente. Em novo confronto, a relação de um para duzentos (dez para dois mil) ainda é grande, mas é mais realista.

 

Fizeram-se ao largo no rio e não estaríamos a um tiro de pedra quando vêm mais de dez mil índios por água e por terra (...) (p. 42)

 

Seguimos assim até o amanhecer, quando nos vimos no meio de muitas e grandes povoações, donde sempre saíam índios de fresco e ficavam os que iam cansados. (...) Começamos a navegar, sem que os índios nos deixassem de seguir e dar combate, porque destas aldeias se tinham reunido mais de 130 canoas, nas quais havia mais de 8.000 índios e por terra era incontável a gente que aparecia. (p. 43)

 

Nem é preciso fazer muita conta: oito mil índios em cento e trinta canoas dá mais de sessenta índios por canoa. Imagine-se o tamanho da mesma. Para efeito de comparação, pensemos que a expedição, descontando os mortos de fome e em combate, contava, àquela altura, com cerca de quarenta homens, divididos nos dois bergantins – barcos maiores que as maiores canoas.

 

Mas ainda nos seguiram durante dois dias e duas noites, sem nos deixarem repousar, que tanto durou para sairmos das terras desse grande senhor Machiparo, e que, no parecer de todos, teria mais de oitenta léguas, todas povoadas, que não havia de povoado a povoado um tiro de balhesta, e as mais distantes, não se afastavam mais de meia légua, e houve aldeias que se estendiam por mais de cinco léguas sem separação de uma casa para outra, o que era coisa maravilhosa de ver. Como íamos de passagem e fugindo, não tivemos oportunidade de saber o que havia terra adentro. Mas segundo a sua disposição e aspecto, deve ser a mais povoada que já se viu. (p. 44)

 

“Aldeias que se estendiam por mais de cinco léguas sem separação de uma casa para outra” era para maravilhar mesmo o dominicano, porque nem em toda a Europa ele veria tal: uma cidade com mais de trinta e cinco quilômetros de frente.

A tomar ao pé da letra o texto de Carvajal – “mais de oitenta léguas, todas povoadas” –, o rio Amazonas era, à época, um rio metropolitano...

As terras superpovoadas continuam a aparecer aos olhos de Carvajal ao longo do trajeto, sendo seus povos muito belicosos. Um último flagrante de hipérbole no texto de Carvajal, com função certamente literária, isto é, de melhorar ainda mais a paisagem que ele via, ocorre na passagem pela foz do rio Negro:

 

No sábado, véspera da Santíssima Trindade[3], mandou o Capitão fundear em uma povoação onde os índios se puseram em defesa. Apesar disso os expulsamos de casa e nos provimos de comida, achando ainda algumas galinhas. Nesse mesmo dia, saindo dali, prosseguindo a nossa viagem, vimos uma boca de outro grande rio, à mão esquerda, que entrava no que navegávamos, e de água negra como tinta, e por isso lhe pusemos o nome de rio Negro. Corria ele tanto e com tal ferocidade que em mais de vinte léguas fazia uma faixa na outra água, sem misturar-se com a mesma. (p. 50)

 

Não deixa de ser sintomático que a chegada do homem branco nestas plagas rionegrinas tenha como representantes meros... ladrões de galinhas.  Para compensar, Carvajal aumenta o espetacular Encontro das Águas em pelo menos 20 vezes, o que não deixa de ser uma licença poética.

 



[1] Apesar dessa divergência, juntá-los, a Le Goff e a Todorov, não é uma contradição, uma vez que ambos trabalham com estratos diversos do maravilhoso.

[2] Peixe-boi.

[3] 3 de junho de 1542 (NEVES, p. 100).