Zemaria Pinto
Hiperbólico, maravilhoso. Para atingir o âmago do maravilhoso, o
maravilhoso puro – aliás, negado por Le Goff (p. 25) –, Tzvetan Todorov
identifica vários tipos de narrativas onde o maravilhoso se sobressai.[1] A
narrativa de Carvajal encaixa-se a perfeição naquilo que o teórico chama de
“maravilhoso hiperbólico”, onde “os fenômenos não são sobrenaturais, a não ser
por suas dimensões, superiores a que nos são familiares” (TODOROV, 1992, p.
60). Por outro lado, a decisão de inflar a realidade pode ser apenas um reflexo
linguístico do espanto, inconsciente, ou uma decisão consciente, que podemos
atribuir a uma categoria de criação literária: o devaneio, a fantasia produzida
em estado de vigília.
O devaneio é uma atividade onírica na qual subsiste uma clareza de
consciência. O sonhador de devaneio está presente no seu devaneio. Mesmo quando
o devaneio dá a impressão de uma fuga para fora do real, para fora do tempo e
do lugar, o sonhador do devaneio sabe que é ele que se ausenta – é ele, em
carne e osso, que se torna um “espírito”, um fantasma do passado ou da viagem.
(BACHELARD, p. 144)
Não se trata de matéria de ficção, pois, mas
sim de uma manipulação consciente da realidade; em nosso caso, histórica.
O maravilhoso
hiperbólico aliado ao devaneio ocorre no texto inúmeras vezes, de sorte que
vamos nos ater a um ponto que tem sido motivo de polêmica desde sempre: o
superpovoamento de algumas áreas do rio Amazonas, apontado por Carvajal, mas
jamais comprovado, embora alguns autores considerem que a presença do europeu
na região foi o estopim de um autêntico genocídio. Comparada com a baixíssima
densidade populacional que conhecemos hoje, as margens do Amazonas vistas por
Carvajal parecem resultantes de um devaneio do autor. O surgimento dessa área
de grande população associa-se às maiores dificuldades bélicas encontradas pela
expedição, numa equação simples, mas perfeita: mais gente, maior resistência.
Antes,
vejamos uma hipérbole carregada de conteúdo ideológico, na construção do
heroísmo de Orellana, cometida logo no segundo encontro com os nativos
pacíficos:
Mas era Nosso Senhor servido que se fizesse tão grande descobrimento e
que o mesmo viesse ao conhecimento da Cesárea Majestade. Por outra via nem
força ou poderio humano seria possível este descobrimento, que com tanta
dificuldade se realizava, sem nele por Deus a sua mão ou sem que se passassem
muitos séculos. (p. 29)
Por vias
transversas, Carvajal atribui o sucesso da expedição a um milagre, sem o qual
“muitos séculos” se passariam para que o Marañon, ou o Amazonas, fosse navegado
até a sua foz. O exagero vai por conta do conhecimento de Carvajal das lendas
em torno do El Dorado, o que tornava apenas uma questão de tempo o
“descobrimento”.
Nas
“províncias” governadas por Machiparo, onde aportam a 12 de maio, e onde
começam verdadeiramente os conflitos com os nativos, Carvajal dá conta de
grandes populações:
Este Machiparo está assentado em uma lomba sobre o mesmo rio e possui
muitas e grandíssimas povoações, que reúnem cinquenta mil homens, entre os
trinta e os setenta anos, porque os mais jovens não vão a guerra. (...) A umas
duas léguas desse povo vimos estar alvejando as aldeias, e não tínhamos andado
muito quando vimos vir rio acima enorme quantidade de canoas, todas aprestadas
para a guerra, airosas e com seus paveses, que são de carapaças de lagartos e
de couros de manatis[2] e
antas, da altura de um homem, pois os cobrem inteiramente. (...) Nossos
companheiros mostravam tanta coragem que lhes parecia que não bastavam para
cada qual mil índios. (p. 37-38)
Chama a
atenção, além da grande quantidade de nativos, a maneira como se organizam para
a guerra com escudos que cobrem o corpo inteiro. As “carapaças de lagartos”
seriam uma referência ao nosso jacaré? Carvajal desconhecia o crocodilo? Na
descrição da batalha, mesmo usando armas tecnicamente mais avançadas, a
superioridade numérica, um para mil, é, claramente, força de expressão, um
exagero linguístico.
Foi o alferes e correu meia légua pela aldeia adentro (...) Visto pelo
alferes o tamanho da aldeia e a população (...) Disse-lhe tudo o que acontecera
e como havia grande quantidade de comida, tanto tartarugas nos currais e
tanques, como muita carne, peixe e biscoitos, tudo em tal abundância que daria
para sustentar um batalhão de mil homens durante um ano. (...) Tratou Cristobal
Maldonado de recolher a comida e tendo já apanhado mais de mil tartarugas (...)
porque os índios eram mais de dois mil e os companheiros de Maldonado não eram
mais que dez, tendo muito que lutar para se defenderem. (p. 39)
Novamente,
pilhamos nosso narrador cometendo o pecado da hipérbole: como poderia
Maldonado, sozinho, ter “apanhado mais de mil tartarugas”? Toda a comida ali
saqueada, aliás, se coubesse nos bergantins, poderia sustentá-los até o final
da viagem; mas ainda passariam muita fome. “Meia légua aldeia adentro”
significa que, da margem do rio para dentro a aldeia tem mais de três
quilômetros e meio de extensão, maior que a maioria das cidades da região,
atualmente. Em novo confronto, a relação de um para duzentos (dez para dois
mil) ainda é grande, mas é mais realista.
Fizeram-se ao largo no rio e não estaríamos a um tiro de pedra quando
vêm mais de dez mil índios por água e por terra (...) (p. 42)
Seguimos assim até o amanhecer, quando nos vimos no meio de muitas e
grandes povoações, donde sempre saíam índios de fresco e ficavam os que iam
cansados. (...) Começamos a navegar, sem que os índios nos deixassem de seguir
e dar combate, porque destas aldeias se tinham reunido mais de 130 canoas, nas
quais havia mais de 8.000 índios e por terra era incontável a gente que
aparecia. (p. 43)
Nem é
preciso fazer muita conta: oito mil índios em cento e trinta canoas dá mais de
sessenta índios por canoa. Imagine-se o tamanho da mesma. Para efeito de
comparação, pensemos que a expedição, descontando os mortos de fome e em
combate, contava, àquela altura, com cerca de quarenta homens, divididos nos
dois bergantins – barcos maiores que as maiores canoas.
Mas ainda nos seguiram durante dois dias e duas noites, sem nos
deixarem repousar, que tanto durou para sairmos das terras desse grande senhor
Machiparo, e que, no parecer de todos, teria mais de oitenta léguas, todas
povoadas, que não havia de povoado a povoado um tiro de balhesta, e as mais
distantes, não se afastavam mais de meia légua, e houve aldeias que se
estendiam por mais de cinco léguas sem separação de uma casa para outra, o que
era coisa maravilhosa de ver. Como íamos de passagem e fugindo, não tivemos
oportunidade de saber o que havia terra adentro. Mas segundo a sua disposição e
aspecto, deve ser a mais povoada que já se viu. (p. 44)
“Aldeias
que se estendiam por mais de cinco léguas sem separação de uma casa para outra”
era para maravilhar mesmo o dominicano, porque nem em toda a Europa ele veria
tal: uma cidade com mais de trinta e cinco quilômetros de frente.
A tomar ao
pé da letra o texto de Carvajal – “mais de oitenta léguas, todas povoadas” –, o
rio Amazonas era, à época, um rio metropolitano...
As terras superpovoadas
continuam a aparecer aos olhos de Carvajal ao longo do trajeto, sendo seus
povos muito belicosos. Um último flagrante de hipérbole no texto de Carvajal,
com função certamente literária, isto é, de melhorar ainda mais a paisagem que
ele via, ocorre na passagem pela foz do rio Negro:
No sábado, véspera da Santíssima Trindade[3], mandou o Capitão fundear em
uma povoação onde os índios se puseram em defesa. Apesar disso os expulsamos de
casa e nos provimos de comida, achando ainda algumas galinhas. Nesse mesmo dia,
saindo dali, prosseguindo a nossa viagem, vimos uma boca de outro grande rio, à
mão esquerda, que entrava no que navegávamos, e de água negra como tinta, e por
isso lhe pusemos o nome de rio Negro. Corria ele tanto e com tal ferocidade que
em mais de vinte léguas fazia uma faixa na outra água, sem misturar-se com a
mesma. (p. 50)
Não deixa
de ser sintomático que a chegada do homem branco nestas plagas rionegrinas
tenha como representantes meros... ladrões de galinhas. Para compensar, Carvajal aumenta o
espetacular Encontro das Águas em pelo menos 20 vezes, o que não deixa de ser
uma licença poética.
[1]
Apesar dessa divergência, juntá-los, a Le Goff e a Todorov, não é uma contradição,
uma vez que ambos trabalham com estratos diversos do maravilhoso.
[2]
Peixe-boi.
[3] 3 de junho de 1542 (NEVES, p. 100).