Amigos do Fingidor

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação 3/8

 

Zemaria Pinto

 

Sob o estandarte do Divino. Ao longo de toda a relação, Carvajal não economiza referências à fé cristã – ora para testemunhar a intervenção divina em algum sucesso, ora para agradecer o “apoio” externo. Outro ponto que chama a atenção é o uso de datas do calendário católico para marcar o tempo da viagem, “funcionando como uma espécie de pedagogia catequética, uma vez que o leitor é obrigado a pesquisar a data aludida no calendário cristão católico” (NEVES, p. 92).

O calendário das festas litúrgicas tem datas fixas e datas móveis. Para calcular estas últimas, Carvajal deixa uma pista:

 

Na quarta-feira, véspera de Corpus Christi, sete de junho[1], mandou o capitão aportar em uma pequena povoação que estava sobre o rio e foi tomada sem resistência. (p. 53)  

 

Antes, para a construção do segundo bergantim, no território de Aparia, ele anotara:

 

Nesse lugar nos demoramos toda a Quaresma, quando se confessaram todos os companheiros com os religiosos que ali estávamos[2] e eu preguei todos os domingos e Festas do Mandato, a Paixão e Ressurreição, o melhor que Nosso Redentor me quis dar a entender com sua graça, e procurei ajudar e esforçar o que pude pela perseverança no bem a todos aqueles irmãos e companheiros, lembrando-lhes que eram cristãos e que serviriam muito a Deus e ao Imperador em prosseguir naquela empresa e suportar com paciência todos os trabalhos presentes, até sair com este novo descobrimento, além de ser isto o que tocava às suas vidas e honras. Também preguei no domingo de Quasímodo, e posso testemunhar com verdade que, tanto o Capitão como todos os outros companheiros, tinham tanta clemência e espírito de santidade de devoção em Jesus Cristo e sua sagrada fé, que bem mostrou Nosso Senhor que era sua vontade o socorrer-nos. (p. 33-34)

 

Neste fragmento, além das referências às datas católicas, podemos observar o trabalho ideológico de Carvajal, como pregador, ao exortar os companheiros a seguir adiante. Mas, Carvajal comete um pequeno deslize ao falar aos companheiros de viagem, de forma anacrônica, sobre “novo descobrimento”, uma vez que, em verdade, o grupo não estava descobrindo nada; antes, estava perdido...

Há referências ao “dia de S. Marcos”, ao “domingo depois da Ascensão de Nosso Senhor”, à “segunda-feira da Páscoa do Espírito Santo”, à “véspera da Santíssima Trindade”, à “festa do bem-aventurado São João Batista” – quando se dá o encontro com as amazonas –, ao dia da “Transfiguração de Nosso Redentor Jesus Cristo” e ao “dia da degolação de São João Batista”. A chegada ao mar é registrada com emoção:

 

Saímos aos vinte e seis dias do mês de agosto, dia de São Luiz, e tivemos tão bom tempo, que nunca, nem pelo rio nem pelo mar, tivemos aguaceiros, o que não foi pequeno milagre que Nosso Senhor obrou conosco. (p. 78)

 

Outros “milagres” são referidos, ao longo da narrativa. Em uma das batalhas, Carvajal diz que os inimigos, que os atacavam por água e por terra, repentinamente interromperam o ataque:

 

Não permitiu Nosso Senhor que nos atacassem, pois se tal fizessem não ficaria ninguém. Assim temos por certo que Nosso Senhor os cegou, para que não nos vissem. (p. 71)

 

A literatura medieval – e, por consequência, a literatura dos viajantes, no século XVI – é toda impregnada de um “maravilhoso cristão”, entendendo-se o maravilhoso como “o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano” (CHIAMPI, p. 48). Vejamos como Le Goff, estudioso do medievo, aproxima o milagre do maravilhoso:

 

O sobrenatural propriamente cristão, aquilo a que justamente poderia chamar-se o maravilhoso cristão, é o que procede do miraculosus; mas o milagre, o miraculum, parece-me ser apenas um elemento bastante restrito, do vasto âmbito do maravilhoso. (LE GOFF, p. 22)

 

No texto de Carvajal, graças à ação heroica do Capitão e à misericórdia divina, o miraculosus se dá num espectro muito mais amplo que o dos milagres anotados por Carvajal: apesar de passarem por um verdadeiro inferno, a proteção divina é um estandarte permanente, à frente da expedição. 

Por ocasião da última batalha que enfrentam, novo “milagre” se dá, após um acidente que quase põe a pique um dos bergantins:

 

Aqui se conheceu muito particularmente que usou Deus de sua misericórdia, pois sem que ninguém compreendesse como fez a mercê divina e com sua imensa bondade e providência se remediou e socorreu, de modo que se calafetou e se pôs uma tábua no bergantim. Ao mesmo tempo se manteve a gente de guerra, não deixando de pelejar durante as três horas gastas na obra da nau. (p. 74-75)

 

Deixando de lado a objetividade, o narrador deixa-se dominar pela emoção:

 

Ó imenso e soberano Deus, quantas vezes nos vimos em transes de agonia, tão perto da morte que, sem a tua misericórdia, era impossível alcançar forças nem conselhos dos vivos para ficar com as vidas! (p. 75)

 

Assim como iniciara a narrativa invocando o nome sagrado, Carvajal não descuida do fecho: “Seja Deus louvado. Amém” (p. 79).



[1] Grifos meus.

[2] Além de Carvajal, ia no grupo um outro religioso, cujo nome ele não cita, que é ignorado também pelos comentaristas do dominicano.