Zemaria Pinto
Sob o estandarte do Divino. Ao longo de toda a relação, Carvajal não
economiza referências à fé cristã – ora para testemunhar a intervenção divina
em algum sucesso, ora para agradecer o “apoio” externo. Outro ponto que chama a
atenção é o uso de datas do calendário católico para marcar o tempo da viagem,
“funcionando como uma espécie de pedagogia catequética, uma vez que o leitor é
obrigado a pesquisar a data aludida no calendário cristão católico” (NEVES, p.
92).
O
calendário das festas litúrgicas tem datas fixas e datas móveis. Para calcular
estas últimas, Carvajal deixa uma pista:
Na quarta-feira, véspera de
Corpus Christi, sete de junho[1],
mandou o capitão aportar em uma pequena povoação que estava sobre o rio e foi
tomada sem resistência. (p. 53)
Antes,
para a construção do segundo bergantim, no território de Aparia, ele anotara:
Nesse lugar nos demoramos toda a Quaresma,
quando se confessaram todos os companheiros com os religiosos que ali estávamos[2] e eu
preguei todos os domingos e Festas do
Mandato, a Paixão e Ressurreição, o melhor que Nosso
Redentor me quis dar a entender com sua graça, e procurei ajudar e esforçar o
que pude pela perseverança no bem a todos aqueles irmãos e companheiros,
lembrando-lhes que eram cristãos e que serviriam muito a Deus e ao Imperador em
prosseguir naquela empresa e suportar com paciência todos os trabalhos
presentes, até sair com este novo descobrimento, além de ser isto o que tocava
às suas vidas e honras. Também preguei no domingo
de Quasímodo, e posso testemunhar com verdade que, tanto o Capitão como
todos os outros companheiros, tinham tanta clemência e espírito de santidade de
devoção em Jesus Cristo e sua sagrada fé, que bem mostrou Nosso Senhor que era
sua vontade o socorrer-nos. (p. 33-34)
Neste
fragmento, além das referências às datas católicas, podemos observar o trabalho
ideológico de Carvajal, como pregador, ao exortar os companheiros a seguir
adiante. Mas, Carvajal comete um pequeno deslize ao falar aos companheiros de
viagem, de forma anacrônica, sobre “novo descobrimento”, uma vez que, em
verdade, o grupo não estava descobrindo nada; antes, estava perdido...
Há
referências ao “dia de S. Marcos”, ao “domingo depois da Ascensão de Nosso
Senhor”, à “segunda-feira da Páscoa do Espírito Santo”, à “véspera da
Santíssima Trindade”, à “festa do bem-aventurado São João Batista” – quando se
dá o encontro com as amazonas –, ao dia da “Transfiguração de Nosso Redentor
Jesus Cristo” e ao “dia da degolação de São João Batista”. A chegada ao mar é
registrada com emoção:
Saímos aos vinte e seis dias do mês de agosto, dia de São Luiz, e tivemos tão bom tempo, que nunca, nem pelo rio
nem pelo mar, tivemos aguaceiros, o que não foi pequeno milagre que Nosso
Senhor obrou conosco. (p. 78)
Outros
“milagres” são referidos, ao longo da narrativa. Em uma das batalhas, Carvajal
diz que os inimigos, que os atacavam por água e por terra, repentinamente
interromperam o ataque:
Não permitiu Nosso Senhor que nos atacassem, pois se tal fizessem não
ficaria ninguém. Assim temos por certo que Nosso Senhor os cegou, para que não
nos vissem. (p. 71)
A
literatura medieval – e, por consequência, a literatura dos viajantes, no
século XVI – é toda impregnada de um “maravilhoso cristão”, entendendo-se o
maravilhoso como “o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano”
(CHIAMPI, p. 48). Vejamos como Le Goff, estudioso do medievo, aproxima o
milagre do maravilhoso:
O sobrenatural propriamente cristão, aquilo a que justamente poderia
chamar-se o maravilhoso cristão, é o que procede do miraculosus; mas o milagre, o miraculum,
parece-me ser apenas um elemento bastante restrito, do vasto âmbito do
maravilhoso. (LE GOFF, p. 22)
No texto
de Carvajal, graças à ação heroica do Capitão e à misericórdia divina, o miraculosus se dá num espectro muito mais
amplo que o dos milagres anotados por Carvajal: apesar de passarem por um
verdadeiro inferno, a proteção divina é um estandarte permanente, à frente da
expedição.
Por
ocasião da última batalha que enfrentam, novo “milagre” se dá, após um acidente
que quase põe a pique um dos bergantins:
Aqui se conheceu muito particularmente que usou Deus de sua
misericórdia, pois sem que ninguém compreendesse como fez a mercê divina e com
sua imensa bondade e providência se remediou e socorreu, de modo que se calafetou
e se pôs uma tábua no bergantim. Ao mesmo tempo se manteve a gente de guerra,
não deixando de pelejar durante as três horas gastas na obra da nau. (p. 74-75)
Deixando
de lado a objetividade, o narrador deixa-se dominar pela emoção:
Ó imenso e soberano Deus, quantas vezes nos vimos em transes de
agonia, tão perto da morte que, sem a tua misericórdia, era impossível alcançar
forças nem conselhos dos vivos para ficar com as vidas! (p. 75)
Assim como
iniciara a narrativa invocando o nome sagrado, Carvajal não descuida do fecho:
“Seja Deus louvado. Amém” (p. 79).