Zemaria Pinto
Devaneios, relembranças. Os devaneios de Carvajal eram compartilhados
com o Capitão. Tomemos o exemplo de uma conversa, no segundo contato pacífico,
com líderes indígenas que queriam saber detalhes da origem dos expedicionários:
Respondeu-lhe o Capitão, repetindo as suas palavras, e lhe disse mais
que éramos filhos do Sol e que íamos àquele rio, como já contara. Disto muito
se admiraram os índios e mostraram muita alegria, tendo-nos por santos ou
pessoas celestiais, porque eles adoram e têm por seu deus o Sol, que chamam
Chise. (p.31)
Seria
aquela mentira mera recordação de histórias ouvidas no Peru?
Mais
adiante, ao saquearem uma aldeia “pequena e tão bem situada, que se diria um
recreio de algum senhor de terra adentro”, em busca de “provisão de boca”,
encontram uma estranha construção:
Havia nessa povoação uma casa de diversões, dentro da qual encontramos
muita louça dos mais variados feitios: havia talhas e cântaros enormes, de mais
de vinte e cinco arrobas, e outras vasilhas pequenas, como pratos, escudelas e
candeeiros, tudo da melhor louça que se viu no mundo, porque a ela nem a de
Málaga se iguala. É toda vidrada e esmaltada de todas as cores, tão vivas que
espantam, apresentando, além disso, desenhos e figuras tão compassadas, que
naturalmente eles trabalham e desenham como o romano.
Disseram-nos ali os índios que tudo o que havia naquela casa, feito de
barro, se encontrava terra adentro feito de ouro e de prata, e que eles nos
levariam lá, pois era perto. Encontramos nessa casa dois ídolos, tecidos de
palha, de diversos modos: eram de estatura de gigantes e tinham metidas no
moledo dos braços umas rodas, a modo de braceletes e outras nas panturrilhas,
perto dos joelhos; as orelhas eram perfuradas e muito grandes, parecendo as dos
índios de Cuzco, porém maiores. (p. 47)
Como se
observa, Carvajal não economiza nas comparações: a louça “vidrada e esmaltada”
é melhor que a de Málaga; os desenhos são tão bons quanto os dos romanos e os
ídolos lembravam os que ele vira em Cuzco. Além disso, havia sempre a promessa
de ouro e prata[1].
Em outra
aldeia saqueada, “de medíocre tamanho”, logo depois da passagem pela foz do rio
Negro, há uma nova referência à adoração do sol, mas o que chama a atenção é o
quadro, “pintado e esculpido em relevo”, no meio de uma praça, representando
elementos desconhecidos dos nativos, como “cidade murada”, “altíssimas torres”
e, principalmente, “ferocíssimos leões”:
Havia lá uma praça muito grande e no meio da praça um grande pranchão
de dez pés em quadro, pintado e esculpido em relevo, figurando uma cidade
murada, com sua cerca e uma porta. Nessa porta havia duas altíssimas torres com
as suas janelas, as torres com portas que se defrontavam, cada porta com duas
colunas. Toda essa obra era sustentada sobre dois ferocíssimos leões que
olhavam para trás, como acautelados um do outro, e a sustinham nos braços e nas
garras. Havia no meio dessa praça um buraco por onde deitavam, como oferenda ao
sol, a chicha, que é o vinho que eles bebem, sendo o Sol que eles adoram e têm
como seu Deus. (p. 51)
Numa
“povoação onde os índios não se defenderam”, repete-se o encontro de elementos
estranhos à região:
Havia nessa aldeia um adoratório, dentro do qual estavam penduradas
muitas divisas de armas de guerra e, por cima de todas, duas mitras muito bem
feitas, como a dos bispos: eram tecidas não sabemos de que, pois não eram de lã
e tinham muitas cores. (p. 58)
“Divisas
de armas de guerra”, além de “duas mitras” afiguram-se como devaneio do bom
frade, que parece nostálgico de um mundo que ficara para trás, e do qual ele se
distancia cada vez mais. Essa falta parece levar Carvajal a identificar nos
nativos, senão a si próprio, o mundo – ou parte dele – que lhe era caro. Por
outro lado, pensando na consolidação da ideia que abraçara, essa identificação
valoriza aquele mundo perdido, tornando o que era naturalmente desigual em
igualdade, mesmo que forçada. Aproximando os dois mundos, ainda que em um nível
mitológico – o que, talvez, para Carvajal, não fizesse diferença –, o eu se
reinventa no outro:
Podem-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma
substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu
é um outro. Mas cada um dos outros é um eu
também, sujeito como eu. (TODOROV, 2010, p. 3)
Esse
questionamento deverá ficar mais claro, embora não inteiramente respondido, no
encontro de Carvajal com as amazonas, um arquétipo que tem povoado o imaginário
de diversos povos há mais de três mil anos.
[1]
A propósito destes minérios, não há notícia da existência de jazidas deles em
toda a região do Amazonas, embora o Pará as tenha em abundância.