Amigos do Fingidor

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação 5/8

 Zemaria Pinto

 

Devaneios, relembranças. Os devaneios de Carvajal eram compartilhados com o Capitão. Tomemos o exemplo de uma conversa, no segundo contato pacífico, com líderes indígenas que queriam saber detalhes da origem dos expedicionários:

 

Respondeu-lhe o Capitão, repetindo as suas palavras, e lhe disse mais que éramos filhos do Sol e que íamos àquele rio, como já contara. Disto muito se admiraram os índios e mostraram muita alegria, tendo-nos por santos ou pessoas celestiais, porque eles adoram e têm por seu deus o Sol, que chamam Chise. (p.31)

 

Seria aquela mentira mera recordação de histórias ouvidas no Peru?

Mais adiante, ao saquearem uma aldeia “pequena e tão bem situada, que se diria um recreio de algum senhor de terra adentro”, em busca de “provisão de boca”, encontram uma estranha construção:

 

Havia nessa povoação uma casa de diversões, dentro da qual encontramos muita louça dos mais variados feitios: havia talhas e cântaros enormes, de mais de vinte e cinco arrobas, e outras vasilhas pequenas, como pratos, escudelas e candeeiros, tudo da melhor louça que se viu no mundo, porque a ela nem a de Málaga se iguala. É toda vidrada e esmaltada de todas as cores, tão vivas que espantam, apresentando, além disso, desenhos e figuras tão compassadas, que naturalmente eles trabalham e desenham como o romano.

Disseram-nos ali os índios que tudo o que havia naquela casa, feito de barro, se encontrava terra adentro feito de ouro e de prata, e que eles nos levariam lá, pois era perto. Encontramos nessa casa dois ídolos, tecidos de palha, de diversos modos: eram de estatura de gigantes e tinham metidas no moledo dos braços umas rodas, a modo de braceletes e outras nas panturrilhas, perto dos joelhos; as orelhas eram perfuradas e muito grandes, parecendo as dos índios de Cuzco, porém maiores. (p. 47)

 

Como se observa, Carvajal não economiza nas comparações: a louça “vidrada e esmaltada” é melhor que a de Málaga; os desenhos são tão bons quanto os dos romanos e os ídolos lembravam os que ele vira em Cuzco. Além disso, havia sempre a promessa de ouro e prata[1].

Em outra aldeia saqueada, “de medíocre tamanho”, logo depois da passagem pela foz do rio Negro, há uma nova referência à adoração do sol, mas o que chama a atenção é o quadro, “pintado e esculpido em relevo”, no meio de uma praça, representando elementos desconhecidos dos nativos, como “cidade murada”, “altíssimas torres” e, principalmente, “ferocíssimos leões”:

 

Havia lá uma praça muito grande e no meio da praça um grande pranchão de dez pés em quadro, pintado e esculpido em relevo, figurando uma cidade murada, com sua cerca e uma porta. Nessa porta havia duas altíssimas torres com as suas janelas, as torres com portas que se defrontavam, cada porta com duas colunas. Toda essa obra era sustentada sobre dois ferocíssimos leões que olhavam para trás, como acautelados um do outro, e a sustinham nos braços e nas garras. Havia no meio dessa praça um buraco por onde deitavam, como oferenda ao sol, a chicha, que é o vinho que eles bebem, sendo o Sol que eles adoram e têm como seu Deus. (p. 51)

 

Numa “povoação onde os índios não se defenderam”, repete-se o encontro de elementos estranhos à região:

 

Havia nessa aldeia um adoratório, dentro do qual estavam penduradas muitas divisas de armas de guerra e, por cima de todas, duas mitras muito bem feitas, como a dos bispos: eram tecidas não sabemos de que, pois não eram de lã e tinham muitas cores. (p. 58)

 

“Divisas de armas de guerra”, além de “duas mitras” afiguram-se como devaneio do bom frade, que parece nostálgico de um mundo que ficara para trás, e do qual ele se distancia cada vez mais. Essa falta parece levar Carvajal a identificar nos nativos, senão a si próprio, o mundo – ou parte dele – que lhe era caro. Por outro lado, pensando na consolidação da ideia que abraçara, essa identificação valoriza aquele mundo perdido, tornando o que era naturalmente desigual em igualdade, mesmo que forçada. Aproximando os dois mundos, ainda que em um nível mitológico – o que, talvez, para Carvajal, não fizesse diferença –, o eu se reinventa no outro:

 

Podem-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. (TODOROV, 2010, p. 3)

 

Esse questionamento deverá ficar mais claro, embora não inteiramente respondido, no encontro de Carvajal com as amazonas, um arquétipo que tem povoado o imaginário de diversos povos há mais de três mil anos.  

 



[1] A propósito destes minérios, não há notícia da existência de jazidas deles em toda a região do Amazonas, embora o Pará as tenha em abundância.