Amigos do Fingidor

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Psicopatologia da composição de Música para surdos 2/6

 Zemaria Pinto

 

O primeiro movimento teria como assuntos a juventude, a vida sem rumo, e, como decorrência disso, a passagem inexorável do tempo e a inevitável solidão. Era aquela melancolia traduzida num andamento inicialmente largo, para em seguida transformar-se num alegro, representando a descoberta da poesia e do amor. Deveria ter de 7 a 8 sonetos.

O segundo movimento, por outro lado, num andamento de adágio, representaria a perda, totalizaria a dor. Teria 3 ou 4 poemas.

O terceiro movimento teria a responsabilidade de apagar a impressão de tristeza deixada pelo anterior e ao mesmo tempo preparar o grand finale. Um alegro moderato. Desde o início, defini que, nesta seção, trataria de mitos, emprestando à “música” a ambiência mágica anteriormente planejada. Mas não seriam quaisquer mitos. Seriam meus, pessoais, exclusivos. Ateu, meus mitos são as representações simbólicas da minha realidade fraturada – metáforas e alegorias do abismo entre o desejo do ser e o ser do desejo. 6 a 7 poemas.

Finalmente, o quarto movimento deveria ser uma celebração à poesia, daí o seu andamento presto, triunfante. 3 a 4 poemas, não mais.

Se contasse o número de poemas pelo máximo, teria 23 sonetos. Pelo mínimo, 19. Números feios, nada sugestivos. Como a coisa já ia se alongando e o primeiro poema já começara a tomar forma (“a ti entrego-te meu braço destro / meu sexo meus olhos e meus delírios”) resolvi batizá-lo com o número 21, e ele seria o “fechamento” do poema – afinal, o 21 é um número carregado de simbolismos, múltiplo que é de 3 e de 7, números relacionados com o sagrado e o místico. Ou seja, dividindo o número de poemas por seção, de acordo com o que considerei a duração ideal da música em cada movimento, dando a cada um deles números pares de poemas, com exceção do último, que sintetizaria em três poemas cada um dos movimentos anteriores, estava definida a extensão do poema: 21 sonetos ou 294 versos. Mas, devo dizer que nada disso guarda qualquer relação com numerologia, cabala ou tarô – é apenas uma estrutura numérica.

É preciso esclarecer, embora óbvio para o leitor de poesia, que um poema se faz de outros poemas e de toda a tradição que o antecede. Tem sido assim desde sempre. Um poema ecoa outros poemas. Por isso, não deve estranhar o leitor pouco afeito às citações que ocorrem ao longo de um poema, que, quando reveladas, parecem pedantismo acadêmico ou falta de originalidade. A música pop inventou o verbo “samplear”. Na Universidade chamam a isso de intertextos ou, o que é muito mais poético, palimpsestos – escritos sobre outros escritos.

Forma, assunto, extensão, um título provisório e até mesmo uma “chave de ouro” – estava esboçado o meu poema. Mas é preciso dizer que a diversidade do item assunto colocou-me frente a um outro problema: o tom do poema. Percebi então que esse tom já estava definido no próprio andamento de cada movimento: o largo é melancólico; o adágio é triste. Ambos trazem uma carga de negatividade existencial e filosófica relacionada ao mal e ao não-ser. Era preciso enfatizar isso. Mas o alegro do primeiro movimento deveria reverter essa situação, levando-a a um paroxismo de plenitude. Por isso o alegro deveria trazer à tona uma visão nova do Homem. Isso me deu outra definição: o sexto poema do primeiro movimento seria uma referência direta ao mal interpretado Nietzsche, uma leitura que me acompanhava havia muito tempo, seguida de uma abordagem amorosa do que vem a ser o fazer poético.

Quanto ao alegro moderato relacionado aos mitos, o melhor tom que se me afigurou foi o da ironia enquanto valor positivo, onde a repulsa se transforma, numa leitura menos banal, em atração fatal. O tom do último movimento deveria sintetizar, como já disse antes, os outros três. Um poema de tom positivo partindo de uma situação negativa, uma louvação à poesia. Um segundo poema, dilacerado, contaminado pela dor da perda e permitindo que esta contamine a própria elaboração poética. Finalmente, o poema de número 21, num procedimento dialético, seria um canto de amor e de entrega à poesia.