Amigos do Fingidor

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Psicopatologia da composição de Música para surdos 5/6

 Zemaria Pinto

  

2o movimento – sob as trevas de setembro

 

. “exercício nº 2” – ouço ainda a voz troante de Eliot: “Abril é o mais cruel dos meses...”.[1] Pouco há que acrescentar aos poemas deste movimento. Há um setembro e uma perda. Há um corte que sangra e novamente a solidão. Não mais a solidão existencial, o estar-só no mundo. Antes, é um estar-sem: “ausência, perda, solidão e nada”.

. “exercício nº 4” – aqui há uma calma dilacerada. O poeta está conformado, a dor cruel é serena, sem as agudezas do desespero. Ele observa o mundo, e, tal como no exercício anterior, o mundo é cinzento, sombrio, soturno. Mas a poesia não o abandonou e ele ainda encontra humor para trocar intertextos com Manuel Bandeira, no segundo quarteto:

 

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos. (...)

O bicho, meu Deus, era um homem.[2]

 

. “exercício nº 8” – setembro ainda ressoa, mas o dia amanhece. O que resiste é a ideia de inferno. Seja o de Rimbaud, seja o de Dante: “Nel mezzo del cammin de nostra vita”.[3] Os sons e os gestos que ficam para além da lembrança, além da razão.

. “exercício nº 16” – “Setembro não tem sentido” é o nome de um livro que não li, de João Ubaldo Ribeiro. Mas o som se incrustou em mim de tal forma que o repetia a cada novo setembro, sob a iminência de novas tempestades. Ao recortar estas memórias, ele retornou, heptassilábico, quebrando a harmonia dos meus decassílabos. Meu poema fraturado. Meu poema áspero, seco, duro. Minha oficina irritada. Mas, tal como no 21, é fácil recompô-lo em quartetos e tercetos. Em meio ao tempo mau, além do diálogo drummondiano – “Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas”[4] –, um relâmpago roseano, resgatado da longínqua primeira leitura de Grande Sertão: Veredas: nonadas.[5]

 

3o movimento - os mitos reclusos

 

. “exercício nº 6” – Januário é mais que um mito, é um arquétipo: o amigo perfeito, dedicado, disponível. Mas, náufrago da navetempo, Januário perdeu o rumo, jogado entre as tralhas esquecidas. Januário, o que trouxe notícias do mar e dos pélagos profundos. Januário, o sábio aventureiro. Januário, o narrador de histórias infinitas. Ecos de Camões, leitura adulta, lembrando o amigo de infância perdido para sempre: “Quando da etérea gávea um marinheiro, / Pronto co’a vista: terra, terra, brada”.[6] Palimpsestos da memória.

. “exercício nº 10” – o Encantado representa a busca pela identidade geográfica, sem perder de vista a tradição acumulada. A Náiade, guardiã dos rios, por exemplo, é grega. Para nós, o que seria bem mais simples, é a Mãe d’Água. A Ofélia, mergulhada em orquídeas, é shakespeariana. Mas o que se quer comemorar é o casamento com a natureza: o leito e a cabeceira do último terceto são do riocorrente do primeiro quarteto, rio negronegro, que em noites de lua parece espelho espedaçado – o mito primordial do andrógino, masculino/feminino, a totalização do ser, o rio Negro. 

. “exercício nº 12” – neste poema entrelaçam-se vozes diversas para cantar a Vaca – antagônica ao homem, o inimigo por excelência –, que morre aos milhões diariamente, e que é sua principal fonte de alimentação. Desde o imenso e ainda incompreendido Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima:

 

Esta a imagem da vaca, a mais pura e singela

que do fundo do sonho eu às vezes esposo

e confunde-se à noite à outra imagem daquela

que ama me amamentou e jaz no último pouso.[7]

 

Passando por Ernesto Penafort: “o touro cinza traz sob o ocipício / estranha meia lua eclipsada / no turvo olhar das vacas do Cambixe”.[8]  Mas nenhuma vaca é mais impressionante, antropomorfizada ou não, que a de Caetano Veloso, em uma canção esquecida nos porões dos anos 70, cuja melodia perdeu-se da memória para sempre:

 

quando vejo você com seus olhos de vaca

com seus grandes olhos de vaca

com seus olhos de vaca triste

menina triste do meu amor (...)

sinto todo o terror do negror desses tempos[9]

 

A Vaca é uma derrotada, talvez daí decorra sua tristeza perene. A minha Vaca é tão triste quanto as dos modelos. Mas tem esperança e pensa poder voar.

. “exercício nº 14” – noite, bebida, inferninhos: luxúria. A vida noturna abriga uma outra fauna, um outro modo de ser. A noite é num inferno dantesco, com seus círculos vorazes, e no segundo círculo, aquele que sucede o círculo/circuito dos bares, o poeta revê Francesca da Rimini, dançando um suave striptease. E como numa ilustração de Doré, outros corpos flutuam, oferecidos, ao redor do poeta, que flutua, embriagado, até cair, como o mantuano: “E caí, como um corpo morto cai”.[10]  Dante cai aos pés de Virgílio, a personificação da Poesia.  

. “exercício nº 18” – a metáfora mais simples e perfeita para mostrar o descaminho do homem sobre a terra é o labirinto. Vale também para a Poesia. Aqui, o poeta vaga entre suas próprias sombras. As paredes do labirinto são espelhos onde ele não vê refletir-se senão a si mesmo. Ou à sua poesia. A referência é, natural e essencialmente, Borges – poesia e prosa.

. “exercício nº 20” – o amizade de Januário, o êxtase da Náiade, a tristeza da Vaca, a noite lasciva e a poesia perdida em seu labirinto sintetizam-se na mulher: Zorobabélia, de pele negrazul e asas nos pés, relâmpago de músculos. O poema de Zorobabélia não tem referências literárias, intertextos, metalinguagens, a não ser por uma notícia a que poucos tiveram acesso: Eva nasceu na África.



[1] Eliot, “O enterro dos mortos”, obra citada: p. 89.

[2] BANDEIRA, Manuel. “O bicho”. In: Estrela da vida inteira. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. p. 179

[3] Primeiro e conhecidíssimo verso de A Divina Comédia, não tem uma tradução adequada em português. Ao pé da letra – “No meio do caminho de nossa vida” –, perde-se a métrica.

[4] Drummond, “No meio do caminho”, obra citada: p. 12.

[5] “– Nonada.” Assim começa o épico de Guimarães Rosa.

[6] CAMÕES, Luís Vaz de. Canto V. In: Os Lusíadas. Lisboa: Verbo, 1972. p. 145.

[7] LIMA, Jorge de. Canto I – Fundação da Ilha. In: Invenção de Orfeu. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. p. 35.

[8] PENAFORT, Ernesto. “O touro”. In: Os limites do azul. Manaus: edição do autor, 1985. p. 66.

[9] “Negror dos tempos”, de Caetano Veloso. Gravada por Maria Bethânia, no LP Drama. Philips Records, 1972.

[10] “E caddi come corpo morto cade.” Último verso do Canto V, do Inferno.