Zemaria Pinto
Ecos da paixão. Chamar aos poemas de “exercícios” nasceu
daquela interação com a memória juvenil. Eu já cometera alguns sonetos, mas um
poeta pós-moderno, como eu me pretendia, tinha lá seus pudores. Ora, direis,
fazer sonetos... Mas havia um, sem título – “Trago nas mãos a lâmina dos anos”
–, dedicado ao amigo Alcides Werk, sonetista exímio, que poderia servir-me.
Tratava-se de assunto relacionado à passagem do tempo, e fora escrito um ano
antes, em ocasião muito sofrida da vida de Alcides. Foi o segundo poema
incorporado ao grupo que viria a ser de 21.
A
sequência em que os outros foram escritos perdeu-se nos vis desvios vãos da
memória. O “exercício nº 5”, por exemplo, o mais anterior entre todos, ficou
entre o 3 e o 9, porque era conveniente que ficasse. Mas o leitor vai observar
que no primeiro e no quarto movimentos todos os exercícios são ímpares e no
segundo e terceiro, pares. O simbolismo aí é primário: o ímpar é a solidão e o
fazer poético é essencialmente solitário. Estes são os assuntos daqueles
movimentos. O par, por outro lado, denota companhia, ou ausência de solidão,
mesmo tendo a perda como consequência – assuntos desses movimentos. Além disso,
o segundo movimento traz uma sequência que se expande em progressão geométrica,
representando o amadurecimento e o distanciamento que a perda causaria na voz
emissora do poema. Considerando um número ilimitado de poemas, o quinto soneto
do segundo movimento, seria o de número 32, o sexto, o 64, o sétimo, o 128
etc., enquanto os outros continuariam na sequência ordinária, apenas alternando
pares e ímpares. Os números, insisto, não têm nenhuma significação velada – sua
importância é apenas estrutural.
Há um
porquê também para as diferenças gráficas. No primeiro movimento, a articulação
correta entre maiúsculas e minúsculas denota uma certa gravidade no tratamento
do assunto. Os dois exercícios finais, entretanto, 17 e 19, repletos de
autoironia, relaxam completamente, inclusive no que diz respeito à pontuação.
No segundo movimento, a prevalência das minúsculas denota introspecção, talvez
medo. Nos movimentos finais, observa-se um misto dessas situações.
Para
efeito, digamos assim, didático, chamemos a voz emissora de “o poeta”. Mantenha
o leitor a certeza de que essa voz não é, necessariamente, a minha, lembrando
sempre que o poeta é um fingidor. Dito isto, vamos a uma breve incursão pelo
texto.
1º movimento – o eu e os outros
.
“exercício nº 1” – as rimas intercaladas têm a intenção subsidiária de mostrar
um certo anacronismo, em relação ao conjunto, todo em rimas brancas. É o poema
do jovem estudante de poesia, solitário em seus múltiplos exercícios
cotidianos.
.
“exercício nº 3” – o jovem poeta vai à rua. É madrugada, embriaga-se. Sonha com
uns versos perdidos de Eliot: “A pomba mergulhando rasga o espaço / Com flama
de terror incandescente”.[1] O
verso final ecoa a Clarice Lispector de Uma
Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres: a pontuação como ideia de
continuidade eterna dentro do humano finito. Um grito de pesadelo. Mudo.
.
“exercício nº 5” – em oposição aos dois exercícios anteriores, em que se
revelava a juventude, a preocupação do poeta agora é com o passar do tempo. O
poeta aqui é um ser humano em decomposição, como uma árvore velha num pântano
sombrio.
.
“exercício nº 9” – escrito em hendecassílabos, este poema dá curso ao anterior,
porém reflete também um certo desconforto do poeta diante da poesia, que o
cerca como espectro de um mundo do qual ele se recusa a tomar parte. Observa-se
nos primeiros versos do segundo quarteto referências a Rilke (“A Pantera”), Poe
(“O Corvo”) e Luiz Bacellar: “memória e angústia fundem-se num branco / cavalo
manco numa rua torta”.[2] O
tempo aqui é um rio de Heráclito, ecoando um distante Vinicius de Moraes: “Meu
tempo é quando”.[3]
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“exercício nº 11” – o poeta lacerado vaga por entre as luzes da cidade, catando
sobras entre as ruínas. Em meio à selva tenebrosa da urbe, tendo perdido a
“verdadeira estrada”, ele recorre a Dante Alighieri para melhor descrevê-la:
“esta selva selvagem, dura e forte / que, de a lembrar, renova todo o medo”.[4] A
solidão por companheira, o poeta atingiu o fundo do poço escuro de si mesmo.
.
“exercício nº 13” – neste poema, o profeta fala pelo poeta. As palavras de
Zaratustra ecoam para além de qualquer horizonte conhecido: a positividade de
“hoje sou ontem e amanhã e sempre” se contrapõe à negatividade de “já não sou
quem fui ou quem serei ou quando”, do “exercício nº 9” e ao errante caminhar do
“exercício nº 11”. Há uma clara mudança de tom – aqui o alegro substitui o
largo. Ouça-se, ainda ecoando Nietzsche, a voz de Eliot: “Nós somos os homens
ocos / Os homens empalhados / Uns nos outros amparados / O elmo cheio de nada.
Ai de nós!”.[5] A
procura está no centro deste poema. Nem por isso o poeta/profeta deixa de
anotar, no último terceto, a solidão dessa busca insana, que leva o artista a
viver com mais intensidade, e, no mais das vezes, por isso mesmo, apagar-se
mais rapidamente.
.
“exercício nº 17” – reencontrada a poesia, o poeta busca melhor compreendê-la,
contemplando os livros da estante perdida no tempo. As reverberações são
diversas. No primeiro quarteto, Rimbaud: “Se bem me lembro, minha vida outrora
era um festim – aberto a todos os corações, regado por todos os vinhos”.[6] No
segundo quarteto, o mergulho é mais raso, ao citar o “poema de todas as
ausências”, de Fragmentos de Silêncio:
“na estante, entre miríades de sonhos e sons / marcianos loucos materializam /
suas fantasias de luzes / fosforescentes”.[7] No terceiro quarteto, o
poeta busca a quintessência do silêncio em Drummond: “Lutar com palavras / é a
luta mais vã”.[8] A
partir deste soneto – e a partir da definição de poesia nele contida – o poema
muda de nome, passando a chamar-se, definitivamente, Música Para Surdos. Nada mais.
.
“exercício nº 19” – único poema do
conjunto escrito em versos alexandrinos, este é um exercício de autoironia e
uma renovação paródica do “exercício nº 13”, enfatizando com graça o que aquele
dissera com as palavras do profeta. Note-se a evolução do tom do poema,
começando com uma linguagem empolada, evoluindo, no segundo quarteto, para uma
anti-helênica beleza, e lembrando, no quarteto seguinte, um clown a ecoar, no dístico final, de
maneira quase chula, o bom Rimbaud: “Um dia, sentei a Beleza no meu colo. E a
achei amarga – e injuriei-a.”[9]
[1] ELIOT, T.
S. “Little Gidding”. In:
Poesia. 2. ed. Tradução: Ivan
Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p. 233
[2]
“Noturno do Bairro dos Tócos”. Bacellar, obra citada: p. 75.
[3]
MORAES, Vinícius de. “Poética”. In: Antologia
Poética. Organização: Vinícius de Moraes. 11. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio,1974. p. 179.
[4]
Perdi as referências desta tradução, mas se trata, claro, dos versos 5 e 6 do
Canto I, do Inferno:
esta selva selvaggia
e aspra e forte
che nel pensier
rinova la paura!
[5]
Eliot, “Os homens ocos”, obra citada: p. 117.
[6]
RIMBAUD, Arthur. Uma estadia no inferno.
Tradução: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 43.
[7]
PINTO, Zemaria. Fragmentos de Silêncio.
Manaus: EDUA, 1995. p. 73-74.
[8]
ANDRADE, Carlos Drummond de. “O lutador”. In: Reunião – 10 livros de poesia. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1974. p. 67.
[9]
Rimbaud, obra citada: p. 43.