Amigos do Fingidor

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Psicopatologia da composição de Música para surdos 4/6

Zemaria Pinto

    

Ecos da paixão. Chamar aos poemas de “exercícios” nasceu daquela interação com a memória juvenil. Eu já cometera alguns sonetos, mas um poeta pós-moderno, como eu me pretendia, tinha lá seus pudores. Ora, direis, fazer sonetos... Mas havia um, sem título – “Trago nas mãos a lâmina dos anos” –, dedicado ao amigo Alcides Werk, sonetista exímio, que poderia servir-me. Tratava-se de assunto relacionado à passagem do tempo, e fora escrito um ano antes, em ocasião muito sofrida da vida de Alcides. Foi o segundo poema incorporado ao grupo que viria a ser de 21.

A sequência em que os outros foram escritos perdeu-se nos vis desvios vãos da memória. O “exercício nº 5”, por exemplo, o mais anterior entre todos, ficou entre o 3 e o 9, porque era conveniente que ficasse. Mas o leitor vai observar que no primeiro e no quarto movimentos todos os exercícios são ímpares e no segundo e terceiro, pares. O simbolismo aí é primário: o ímpar é a solidão e o fazer poético é essencialmente solitário. Estes são os assuntos daqueles movimentos. O par, por outro lado, denota companhia, ou ausência de solidão, mesmo tendo a perda como consequência – assuntos desses movimentos. Além disso, o segundo movimento traz uma sequência que se expande em progressão geométrica, representando o amadurecimento e o distanciamento que a perda causaria na voz emissora do poema. Considerando um número ilimitado de poemas, o quinto soneto do segundo movimento, seria o de número 32, o sexto, o 64, o sétimo, o 128 etc., enquanto os outros continuariam na sequência ordinária, apenas alternando pares e ímpares. Os números, insisto, não têm nenhuma significação velada – sua importância é apenas estrutural.

Há um porquê também para as diferenças gráficas. No primeiro movimento, a articulação correta entre maiúsculas e minúsculas denota uma certa gravidade no tratamento do assunto. Os dois exercícios finais, entretanto, 17 e 19, repletos de autoironia, relaxam completamente, inclusive no que diz respeito à pontuação. No segundo movimento, a prevalência das minúsculas denota introspecção, talvez medo. Nos movimentos finais, observa-se um misto dessas situações. 

Para efeito, digamos assim, didático, chamemos a voz emissora de “o poeta”. Mantenha o leitor a certeza de que essa voz não é, necessariamente, a minha, lembrando sempre que o poeta é um fingidor. Dito isto, vamos a uma breve incursão pelo texto.

 

1º movimento – o eu e os outros

 

. “exercício nº 1” – as rimas intercaladas têm a intenção subsidiária de mostrar um certo anacronismo, em relação ao conjunto, todo em rimas brancas. É o poema do jovem estudante de poesia, solitário em seus múltiplos exercícios cotidianos.

. “exercício nº 3” – o jovem poeta vai à rua. É madrugada, embriaga-se. Sonha com uns versos perdidos de Eliot: “A pomba mergulhando rasga o espaço / Com flama de terror incandescente”.[1] O verso final ecoa a Clarice Lispector de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres: a pontuação como ideia de continuidade eterna dentro do humano finito. Um grito de pesadelo. Mudo.

. “exercício nº 5” – em oposição aos dois exercícios anteriores, em que se revelava a juventude, a preocupação do poeta agora é com o passar do tempo. O poeta aqui é um ser humano em decomposição, como uma árvore velha num pântano sombrio.

. “exercício nº 9” – escrito em hendecassílabos, este poema dá curso ao anterior, porém reflete também um certo desconforto do poeta diante da poesia, que o cerca como espectro de um mundo do qual ele se recusa a tomar parte. Observa-se nos primeiros versos do segundo quarteto referências a Rilke (“A Pantera”), Poe (“O Corvo”) e Luiz Bacellar: “memória e angústia fundem-se num branco / cavalo manco numa rua torta”.[2] O tempo aqui é um rio de Heráclito, ecoando um distante Vinicius de Moraes: “Meu tempo é quando”.[3]

. “exercício nº 11” – o poeta lacerado vaga por entre as luzes da cidade, catando sobras entre as ruínas. Em meio à selva tenebrosa da urbe, tendo perdido a “verdadeira estrada”, ele recorre a Dante Alighieri para melhor descrevê-la: “esta selva selvagem, dura e forte / que, de a lembrar, renova todo o medo”.[4] A solidão por companheira, o poeta atingiu o fundo do poço escuro de si mesmo.

. “exercício nº 13” – neste poema, o profeta fala pelo poeta. As palavras de Zaratustra ecoam para além de qualquer horizonte conhecido: a positividade de “hoje sou ontem e amanhã e sempre” se contrapõe à negatividade de “já não sou quem fui ou quem serei ou quando”, do “exercício nº 9” e ao errante caminhar do “exercício nº 11”. Há uma clara mudança de tom – aqui o alegro substitui o largo. Ouça-se, ainda ecoando Nietzsche, a voz de Eliot: “Nós somos os homens ocos / Os homens empalhados / Uns nos outros amparados / O elmo cheio de nada. Ai de nós!”.[5] A procura está no centro deste poema. Nem por isso o poeta/profeta deixa de anotar, no último terceto, a solidão dessa busca insana, que leva o artista a viver com mais intensidade, e, no mais das vezes, por isso mesmo, apagar-se mais rapidamente.

. “exercício nº 17” – reencontrada a poesia, o poeta busca melhor compreendê-la, contemplando os livros da estante perdida no tempo. As reverberações são diversas. No primeiro quarteto, Rimbaud: “Se bem me lembro, minha vida outrora era um festim – aberto a todos os corações, regado por todos os vinhos”.[6] No segundo quarteto, o mergulho é mais raso, ao citar o “poema de todas as ausências”, de Fragmentos de Silêncio: “na estante, entre miríades de sonhos e sons / marcianos loucos materializam / suas fantasias de luzes / fosforescentes”.[7] No terceiro quarteto, o poeta busca a quintessência do silêncio em Drummond: “Lutar com palavras / é a luta mais vã”.[8] A partir deste soneto – e a partir da definição de poesia nele contida – o poema muda de nome, passando a chamar-se, definitivamente, Música Para Surdos. Nada mais. 

. “exercício nº 19” –  único poema do conjunto escrito em versos alexandrinos, este é um exercício de autoironia e uma renovação paródica do “exercício nº 13”, enfatizando com graça o que aquele dissera com as palavras do profeta. Note-se a evolução do tom do poema, começando com uma linguagem empolada, evoluindo, no segundo quarteto, para uma anti-helênica beleza, e lembrando, no quarteto seguinte, um clown a ecoar, no dístico final, de maneira quase chula, o bom Rimbaud: “Um dia, sentei a Beleza no meu colo. E a achei amarga – e injuriei-a.”[9]



[1] ELIOT, T. S. “Little Gidding”. In: Poesia. 2. ed. Tradução: Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p. 233

[2] “Noturno do Bairro dos Tócos”. Bacellar, obra citada: p. 75.

[3] MORAES, Vinícius de. “Poética”. In: Antologia Poética. Organização: Vinícius de Moraes. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1974. p. 179.

[4] Perdi as referências desta tradução, mas se trata, claro, dos versos 5 e 6 do Canto I, do Inferno:

esta selva selvaggia e aspra e forte

che nel pensier rinova la paura!  

[5] Eliot, “Os homens ocos”, obra citada: p. 117.

[6] RIMBAUD, Arthur. Uma estadia no inferno. Tradução: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 43.

[7] PINTO, Zemaria. Fragmentos de Silêncio. Manaus: EDUA, 1995. p. 73-74.

[8] ANDRADE, Carlos Drummond de. “O lutador”. In: Reunião – 10 livros de poesia. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. p. 67.

[9] Rimbaud, obra citada: p. 43.