Zemaria Pinto
Pronto.
Estava desenhado o meu poema. Faltava apenas escrevê-lo. Ou melhor, faltava
escrever os 21 poemas que o comporiam, sempre lembrando o velho e querido Poe.
Como disse anteriormente, durante o planejamento, que durou, entre concepção e
amadurecimento, algo em torno de 6 a 8 semanas, um poema começou a tomar forma,
o de número 21, aquele canto de amor que deveria encerrar o poema,
sintetizando-o. E por que começar pelo fim? Recorro mais uma vez a Poe:
Só tendo o epílogo,
constantemente em vista, poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de
consequência, ou causalidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o
tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção.[1]
Não tinha
mais que os dois versos citados parágrafos atrás, mas sabia que o sujeito
oculto neles era a própria poesia. Mas como abusaria à exaustão da forma
soneto, resolvi trocar o todo pela parte, e referindo-me a Mário Faustino, que
deu outra dignidade ao soneto no início dos anos 60, comecei assim o fim do meu
poema:
soneto meu, faustino
de armação
O verso
seguinte refere-se às quebras promovidas ao longo do poema, que, todo em
decassílabos, emprestam ao leitor uma outra possibilidade de leitura, fugindo
ao metro convencional. Compare os três seguintes versos do primeiro quarteto:
tramado e arquitetado em vário pé
desarma-se em vis desvios vãos
limítrofes à tinta e ao papel
O leitor
poderá, sem dificuldade, recompor em decassílabos o segundo quarteto, que
finaliza recorrendo ao auxílio luxuoso de Caetano Veloso: “e no joelho uma
criança sorridente, feia e morta / estende a mão / (...) / e nos jardins os
urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis”.[2] Este soneto, não esqueça o
leitor, deveria sintetizar o que seria o movimento dos mitos pessoais, além de
ter a responsabilidade de encerrar o poema. Daí a necessidade de fazê-lo fora
do comum na forma, mas sem cair, em relação ao conteúdo, na armadilha da mera
lembrança. “Tropicália” e Caetano fizeram parte da minha descoberta da poesia,
ali pelos 11, 12 anos de idade. Ao mesmo tempo, o “crânio morto” refere-se
diretamente ao Hamlet que vestia todas as minhas fantasias de loucura e
suicídio: “síntese de nada ou cousa alguma”.
Este
poema, o “exercício nº 21”, é tão autobiográfico na tentativa de reconstituição
dos mitos pessoais, que talvez fique ininteligível para o leitor, sem que se
faça um resumo histórico: Santarém, 1969. Temporada com a avó. AI-5 em vigor.
As Forças Armadas promovem exercícios antiguerrilha em plena área urbana. Foi
lá, no meio das salvas de festim, entre Caetano, Shakespeare e o fantasma
aureolado do Che,[3] que
eu senti queimar pela primeira vez a centelha da poesia. Foi lá que eu senti
pela primeira vez a angústia de estar no mundo. A impotência de ser um objeto
humano, meramente manipulável. Lia sob a luz de duas lamparinas a querosene. E
o único contato com o mundo, além das buzinas dos navios em trânsito, era a BBC
de Londres, transmitindo em português, no rádio a pilha do tio louco. O
“exercício nº 21” é uma conversa íntima entre o poeta e sua poesia:
a ti revelo-te tua natureza
Mostro a mim mesmo, e a Ela, onde tudo começou.
[1]
Poe, obra citada: p. 61.
[2]
“Tropicália”, de Caetano Veloso. LP Caetano
Veloso. Philips Records, 1968.
[3]
Sem relação com o poema, mas muito viva na minha lembrança, a canção “Soy loco
por ti, América”, de Gil e Capinam, que Caetano cantava no citado álbum de
1968: “El nombre del hombre muerto / Ya no se puede decirlo, quién sabe?” O que
se cochichava pelas ruas de barro batido da cidadezinha era que “el hombre” não
morrera – e era por isso que as forças estavam em movimento. Esperando-o, para
matá-lo novamente, quantas vezes fosse preciso...