Amigos do Fingidor

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Psicopatologia da composição de Música para surdos 3/6


Zemaria Pinto

 

Pronto. Estava desenhado o meu poema. Faltava apenas escrevê-lo. Ou melhor, faltava escrever os 21 poemas que o comporiam, sempre lembrando o velho e querido Poe. Como disse anteriormente, durante o planejamento, que durou, entre concepção e amadurecimento, algo em torno de 6 a 8 semanas, um poema começou a tomar forma, o de número 21, aquele canto de amor que deveria encerrar o poema, sintetizando-o. E por que começar pelo fim? Recorro mais uma vez a Poe:

 

Só tendo o epílogo, constantemente em vista, poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de consequência, ou causalidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção.[1]

 

Não tinha mais que os dois versos citados parágrafos atrás, mas sabia que o sujeito oculto neles era a própria poesia. Mas como abusaria à exaustão da forma soneto, resolvi trocar o todo pela parte, e referindo-me a Mário Faustino, que deu outra dignidade ao soneto no início dos anos 60, comecei assim o fim do meu poema:

 

soneto meu, faustino de armação

 

O verso seguinte refere-se às quebras promovidas ao longo do poema, que, todo em decassílabos, emprestam ao leitor uma outra possibilidade de leitura, fugindo ao metro convencional. Compare os três seguintes versos do primeiro quarteto:

 

tramado e arquitetado em vário pé

desarma-se em vis desvios vãos

limítrofes à tinta e ao papel

 

O leitor poderá, sem dificuldade, recompor em decassílabos o segundo quarteto, que finaliza recorrendo ao auxílio luxuoso de Caetano Veloso: “e no joelho uma criança sorridente, feia e morta / estende a mão / (...) / e nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis”.[2] Este soneto, não esqueça o leitor, deveria sintetizar o que seria o movimento dos mitos pessoais, além de ter a responsabilidade de encerrar o poema. Daí a necessidade de fazê-lo fora do comum na forma, mas sem cair, em relação ao conteúdo, na armadilha da mera lembrança. “Tropicália” e Caetano fizeram parte da minha descoberta da poesia, ali pelos 11, 12 anos de idade. Ao mesmo tempo, o “crânio morto” refere-se diretamente ao Hamlet que vestia todas as minhas fantasias de loucura e suicídio: “síntese de nada ou cousa alguma”.

Este poema, o “exercício nº 21”, é tão autobiográfico na tentativa de reconstituição dos mitos pessoais, que talvez fique ininteligível para o leitor, sem que se faça um resumo histórico: Santarém, 1969. Temporada com a avó. AI-5 em vigor. As Forças Armadas promovem exercícios antiguerrilha em plena área urbana. Foi lá, no meio das salvas de festim, entre Caetano, Shakespeare e o fantasma aureolado do Che,[3] que eu senti queimar pela primeira vez a centelha da poesia. Foi lá que eu senti pela primeira vez a angústia de estar no mundo. A impotência de ser um objeto humano, meramente manipulável. Lia sob a luz de duas lamparinas a querosene. E o único contato com o mundo, além das buzinas dos navios em trânsito, era a BBC de Londres, transmitindo em português, no rádio a pilha do tio louco. O “exercício nº 21” é uma conversa íntima entre o poeta e sua poesia:

 

a ti revelo-te tua natureza

 

Mostro a mim mesmo, e a Ela, onde tudo começou.

 



[1] Poe, obra citada: p. 61.

[2] “Tropicália”, de Caetano Veloso. LP Caetano Veloso. Philips Records, 1968.

[3] Sem relação com o poema, mas muito viva na minha lembrança, a canção “Soy loco por ti, América”, de Gil e Capinam, que Caetano cantava no citado álbum de 1968: “El nombre del hombre muerto / Ya no se puede decirlo, quién sabe?” O que se cochichava pelas ruas de barro batido da cidadezinha era que “el hombre” não morrera – e era por isso que as forças estavam em movimento. Esperando-o, para matá-lo novamente, quantas vezes fosse preciso...