Allison Leão
Mesmo em meio ao infindável mar de saias e pernas, A.M.A. se destacava. Às vezes F.O.B. ficava no fim baixo da escadaria do colégio, olhando para o alto. Regozijava-se em poder identificar A.M.A. apenas pelo par de pernas. Primeiro, pelo método da negação: aquela com cicatriz de queimadura feita em escapamento de moto era Ana Célia; uma cabeluda, que não se depilava nunca, era Ivete; os joelhos mais ossudos eram de Dolores; as pernas gordas e sempre suadas, de Úrsula; as mais manchadas, de Telma; umas que pareciam parênteses, de Cibele; as cobertas pela longa saia, da pentecostal Jussara; as nem um pouco cobertas, da desinibida Irene.
Depois, o método positivo: as pernas de A.M.A. Os olhos de F.O.B. as identificavam com deliciosa facilidade. Seu olhar subia a partir das meias soquete, desenhava o sinuoso contorno até perder-se em imaginações por debaixo da saia azul-marinho. Subia estonteado pela cintura até os seios na provocadora contraluz do tergal branco. F.O.B. demorava-se na diáfana curva dos seios, como se já os conhecesse. E enfim, o rosto...
Para F.O.B., que crescera videando angelicais apresentadoras de programas infantis, A.M.A. era obviamente bela. Parecia que não suava, de tão perfeita (F.O.B. odiava suor.). Os olhos verdes, a pele branca e os longos cachos dourados da moça-princesa, no entender de F.O.B., naturalmente combinavam com ele. Pois se ele não tinha nariz chato, pele escura nem cabelo crespo, era mais do que natural, era lógico que ela seria dele. Na média, pensava F.O.B., os iguais ficam com os seus.
Foi assim que, naturalmente, aquele ano passou. E naturalmente eles se aproximaram. Algumas vezes, trocaram beijos na praça. Mesmo ali, entre guetos de góticos, metaleiros, hippies e surdo-mudos – gente suja e burra, como ele os via –, F.O.B. não se aborrecia: seus neurônios só se concentravam na sua áurea namorada. No último dia de aulas ele a acompanhou no caminho para casa. A.M.A. estava linda. Usava uma camisa verde com uma rosa em róseo bordada sobre o seio esquerdo, o que realçava sua delicada beleza de moça loira. Naturalmente, os passos foram lentos. E erraram o caminho de casa, naturalmente. Até que se viram numa construção abandonada, quase sem saber como haviam chegado ali. Quase como se seus corpos, e não eles, os tivessem conduzido. Não tardou para o calor lhes subir entre ambos, o que também é coisa muito natural. A.M.A., semidespida, o rosto pegando fogo de vermelho, já não era mais simplesmente a angelical figura de minutos antes; e algo como a vaga idéia de uma pureza dourada potencialmente conspurcada atordoou F.O.B. Mas entendamos: F.O.B. não chegou a saber se a idéia era boa ou ruim. Sequer reconheceu aquela confusão como uma idéia plena. Seu atordoamento derivava de ter-se percebido deleitado com o que sentia ante a anunciação da idéia. Tão confuso e excitado estava F.O.B., que ignorou os suores de ambos os corpos. Pela primeira vez, F.O.B. sentia que poderia ser excessivamente físico, guiado pelo que o corpo lhe ordenasse. O coice da vontade aplacando a razão. Lúcido, como, agora?
Imaginando que F.O.B. soubesse o que fazer, mas não como fazer, A.M.A. segurou-lhe o pênis aflito e tentou conduzi-lo até sua áurea vagina, delicadamente, como se com esse gesto ela tivesse o corpo inteiro de F.O.B. em suas mãos. Iniciação, mudança, transformação: F.O.B. tão perto de tudo isso!
Mas que luz de alerta será a que agora se acende?
F.O.B. ainda teve uma nesga de razão, o suficiente para se lembrar de sua até então inseparável Erotic – testada eletronicamente. Enquanto A.M.A. contorcia-se de excitação, F.O.B. executava os procedimentos técnicos com o preservativo, tantas vezes repassados em lições semanais com Doutor Papai e Doutora Mamãe. Três anos de uma longa mas natural expectativa!... F.O.B. ligaria o tempo de espera ao prazo de validade da camisinha antes que penetrasse a ansiosa vagina de A.M.A. Na precária iluminação do ambiente, F.O.B. confirmou a desgraçada suspeita. Havia 8 dias a validade de sua Erotic expiara. E o pênis de F.O.B. voltou, teso e virginal, para a gaveta das expectativas.
A.M.A. foi compreensiva. Apesar da frustração, a fria cautela de F.O.B. – oito dias são 8 dias – era correta. Aos quinze anos, um filho... Um desastre! F.O.B. de repente pareceu a A.M.A. um daqueles admiráveis homens que podem passar a vida inteira sem jamais sentir os sobressaltos que as surpresas e as desgraças dão ao comum da gente.
F.O.B. garantiu que no dia seguinte iria à farmácia comprar novas camisinhas. E que se encontrassem ao fim da tarde, talvez ali mesmo... E obteve de A.M.A. a promessa de um telefonema confirmando o encontro, agora muito melhor planejado. Mas ela não telefonou. Nem nunca telefonaria.
Quando se reiniciaram as aulas, F.O.B. soube que A.M.A. se transferira para o Colégio Estadual, onde a proporção entre moças e rapazes era bem mais equilibrada que no Instituto de Educação, e seu coração foi sacudido por mais um sentimento desconhecido, que ele não soube compreender.
Poucos meses depois, viu-a de longe na mesma praça onde um dia a beijara. Ela estava de costas, em meio a um grupo de jovens, e vestia roupas escuras. Mas a silhueta ainda era inconfundível, apesar dos cabelos agora curtos. F.O.B. já caminhava resoluto em direção a A.M.A quando uma série confusa de sentimentos o atingiu: um outro rapaz beijou duas vezes o rosto que ele um dia fizera arder – outro a usar o que fora seu. Entalado pelo choque, deixou que suas pernas o levassem para longe dali. Não pela chegada do oponente, que bem podia ser apenas um amigo. Também o cigarro entre os dedos de A.M.A. era-lhe, naquele momento, irrelevante – apesar de ser um hábito nada saudável, observaria depois. Impossível para F.O.B. era aproximar-se de A.M.A. enquanto ela vestia a camiseta cuja estampa ele agora divisava com exatidão: a imagem, a careta de Janis Joplin flagrada no instante de um rouco, grotesco e assombroso Yeah!
A.M.A. não servia mais para F.O.B. Naturalmente.