Amigos do Fingidor

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Sampa, um exercício intertextual

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Zemaria Pinto

Desde quando Baudelaire observou, há mais de 150 anos, que o Homem caminha por entre “florestas de símbolos”, nunca mais a literatura foi a mesma. Os conceitos sucessivos de dialogismo (Bakhtin) e intertextualidade (Kristeva) colocam a obra literária moderna como tendo origem e fim na própria literatura, como um espelho estilhaçado refletindo imagens, ampliando-as, reduzindo-as, invertendo-as. Isso faz com que a obra tenha múltipla significação, sendo propensa, portanto, a diversas leituras.

Nas últimas três décadas, “Sampa”, de Caetano Veloso, tem sido número obrigatório em qualquer seleção de mpb, em discos, bares, rodas de amigos etc. É sucesso fácil. Mas o que é “Sampa”, além de uma bela canção? Usando uma disposição gráfica arbitrária, baseada nas unidades de sentido texto/melodia, uma vez que Caetano nunca a publicou, vamos relembrar integralmente o poema, e em seguida, num exercício de leitura intertextual, enumerar alguns dos diversos referentes externos nele contidos.

1o. bloco – alguma coisa acontece no meu coração / que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João / é que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi / da dura poesia concreta de tuas esquinas / da deselegância discreta de tuas meninas / ainda não havia para mim Rita Lee / a tua mais completa tradução / alguma coisa acontece no meu coração / que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João

2o. bloco – quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto / chamei de mau gosto o que vi / de mau gosto o mau gosto / é que Narciso acha feio o que não é espelho / e à mente apavora o que ainda não é mesmo velho / nada do que não era antes quando não somos mutantes / e foste um difícil começo / afasto o que não conheço / e quem vem de outro sonho feliz de cidade / aprende depressa a chamar-te de realidade / porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

3o. bloco – do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas / da força da grana que ergue e destrói coisas belas / da feia fumaça que sobe apagando as estrelas / eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços / tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva / panaméricas de áfricas utópicas, túmulo do samba, mais possível novo quilombo de Zumbi / e os Novos Baianos passeiam na tua garoa / e novos baianos te podem curtir numa boa

Primeiro Bloco – logo no primeiro verso há uma referência clara à canção “Carinhoso”, de Pixinguinha e Braguinha: “meu coração / não sei porquê / bate feliz / quando te vê”. O coração que canta “Carinhoso” entra em descompasso pela alegria de encontrar a mulher amada. O coração que canta “Sampa” sente o mesmo ao depara-se com o centro velho da cidade-musa.

No instigante samba-rap “Língua”, Caetano explicaria o “erro” de concordância do segundo verso: “vamos atentar para a sintaxe dos paulistas”. Em “Sampa”, apropriando-se do falar coloquial paulistano, o “eu” lírico emissor, em diálogo com um “tu” sublimado pela própria cidade, fala a linguagem cotidiana do imigrante integrado à metrópole. Observe-se, ainda, a referência à canção “Ronda”, de Paulo Vanzolini, na textura musical da introdução até o segundo verso, quando, por um breve instante, parece-nos ouvir o conhecido “cena de sangue num bar da avenida São João”.

Nos versos seguintes deste bloco, Caetano desculpa-se com os paulistanos por declarações nada simpáticas em relação à cidade, quando ainda não conhecia a poesia concreta, movimento poético nascido em São Paulo, cujos principais teóricos viram no Tropicalismo uma vertente musical de sua poesia. A cantora Rita Lee, ao lado dos irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista, formou a banda Os Mutantes, participantes de primeira hora do Tropicalismo, e uma das poucas coisas interessantes surgidas até hoje no insípido rock nacional.

Segundo Bloco – aqui o “eu” lírico descobre a realidade da megalópole em relação à sua origem: Santo Amaro da Purificação ou a capital, Salvador, seja qual for o parâmetro do poeta-narciso, São Paulo reflete-se num espelho multifacetado, revelando-se, de qualquer ângulo, “o avesso do avesso do avesso do avesso” de qualquer sonho de felicidade. O aprendizado é lento e vai do não-se-ajustar, não-se-reconhecer, até a identificação completa, explicitada no bloco poético seguinte, num processo de mutação contínua.

Terceiro Bloco – os três primeiros versos, de forma concisa e elaborada, desvelam a metrópole paulista: filas/vilas/favelas/grana/fumaça. Mas daquela paisagem sombria que causara no “eu” emissor, em data perdida no tempo, a repulsa, ele vê surgir “poetas de campos e espaços”, reafirmando a influência dos concretistas Augusto e Haroldo de Campos, e brincando com um dos postulados da poesia concreta: a valorização da disposição espacial dos elementos gráficos do poema.

No verso que se segue, as “oficinas de florestas” nos dão margem a, pelo menos, duas leituras. Na primeira, as florestas referem-se ao estereótipo da “selva de pedra”, em movimento contínuo e dinâmico, horizontal e verticalmente. No discurso intertextualizado, porém, refere-se ao Teatro Oficina, cujas montagens revolucionaram a estética teatral brasileira nos anos 60. Nesse mesmo verso, “deuses da chuva”, de plasticidade ímpar, descreve o mítico movimento cotidiano sob a garoa da cidade. Mas não é, necessariamente, a única leitura. Podemos anotar uma referência aos “Demônios da Garoa”, conjunto musical “especializado” em Adoniran Barbosa, cultor daquela especial “sintaxe paulista”, que Caetano adota em “Sampa”. Uma terceira referência é o romance “Deus da Chuva e da Morte”, do irrequieto Jorge Mautner, presença sempre próxima aos tropicalistas.

Os versos seguintes, ou melhor, o longo verso seguinte, sugere a panetnia paulista, para onde diversos segmentos populacionais convergem, numa convivência pacífica e – no sentido colocado no texto, citando o continente africano, desagregado – utópica. Em “Vaca Profana”, canção de 1984, Caetano canta, a propósito dessa pan-etnia, que “São Paulo é como o mundo todo”. Mas “PanAmérica” é também o título do cultuado romance de José Agrippino de Paula, que Caetano situa na raiz do ideário tropicalista.

Foi Vinícius de Moraes, parceiro de Adoniran, quem cunhou a expressão “túmulo do samba”. Para Caetano, entretanto, São Paulo é a fonte revitalizadora da música popular brasileira, metaforizada pelo quilombo de Zumbi, numa nova referência ao teatro, desta vez ao grupo Arena, responsável pela montagem de “Arena Conta Zumbi”, que seguia uma linha mais popular e engajada que o Oficina.

Finalmente, já identificado por inteiro com a megalópole, o “eu” lírico vê os Novos Baianos integrados à paisagem urbana. Se considerarmos que o conjunto formado por João Galvão, Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo e Pepeu Gomes, entre outros, surgiu logo após a efervescência maior do Tropicalismo, este verso pode ser entendido como uma alusão à capacidade paulista de absorver sem traumas a produção cultural brasileira, para daí irradiá-la ao resto do país. No último verso, “novos baianos” são todos os imigrantes, especialmente os nordestinos, invertendo completamente a conotação pejorativa do adjetivo, emprestando-lhe até algum carinho. Numa boa.


PS1: texto escrito em 1988, como parte de um ensaio mais amplo, denominado Viagem e metalinguagem na poesia de Caetano Veloso.

PS2: O ensaio Sampa, uma parada, de Romildo Sant’Anna, in Poesia e Música (Perspectiva, 1985, org. de Carlos Daghlian), foi a bibliografia básica para este texto.