Amigos do Fingidor

terça-feira, 18 de maio de 2010

o barco

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Marco Adolfs

Com a ordem de ativar o fogo da fornalha, a tripulação do Paes de Carvalho deu início aos preparativos da partida. Passageiros elegantemente vestidos e uma leva de retirantes fluviais se aglomeravam no cais do porto à espera do sinal para o embarque. Com todos sabendo da extrema pontualidade dos gaiolas, tudo parecia controlado e dentro do tempo estipulado para a saída. O comandante João de Deus, devidamente descansado, observava do alto da cabina de comando o transporte das últimas cargas e os movimentos necessários que a sua tripulação tinha que fazer. Como sempre, sua escala seguiria o trajeto da linha do Juruá, passando por lugarejos inexpressivos até chegar ao porto principal. Além da carga de sempre, naquela noite o Paes de Carvalho estava levando mais de duzentas pessoas.

Passados um quarto de hora e praticamente transportada toda a carga – o que já vinha acontecendo desde o dia anterior –, o comandante pediu ao seu imediato que ordenasse a subida dos passageiros, enquanto ele iria vistoriar, junto com um funcionário da Capitania dos Portos, o acondicionamento final dos volumes. O que lhe preocupava, além da quantidade e peso da carga, que talvez excedesse mais de cem toneladas, era o volume, bastante significativo, de inflamáveis e explosivos que, naquela noite, o vapor estava carregando. Eram mais de cem caixas de gasolina, cerca de trezentas caixas de querosene e sessenta caixas de pólvora que seriam levadas para a cidade de Seabra e para um lugarejo do alto Juruá. O comandante João de Deus sabia do risco que corria transportando esses volumes com aquela quantidade de passageiros circulando pelos conveses. Acidentes já haviam acontecido em outros barcos e ele preocupava-se sobremaneira com isso. Comentou o fato com o funcionário da Capitania e procurou logo se afastar daquele local do vapor onde os combustíveis estavam acondicionados. Verificou as amarras mais uma vez e acreditou que nada de mau aconteceria.

– Estão com as amarras fortemente enlaçadas – comentou, dirigindo-se ao funcionário.

Já com todos os passageiros acomodados em seus camarotes e lugares, e a fornalha em seu ponto de pressão adequado, à meia-noite o comandante deu o sinal para os maquinistas acionarem os motores. Neste exato momento, passageiros começaram a afluir para a lateral do barco, ansiosos por uma despedida ou aceno na direção de familiares ou conhecidos. Lentamente o Paes de Carvalho distanciou-se do porto, iluminando, com suas luzes e holofotes, trechos daquele rio cobertos pelo clima de uma madrugada fria e que se prenunciava insidiosa. O comandante respirou fundo e desviou o olhar para uma folhinha afixada ali perto. Marcava o dia 19 de março de 1926.