Amigos do Fingidor

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Processos históricos na ética médica (4/7)

.

João Bosco Botelho


B. No Egito

As principais fontes históricas que fornecem informações das práticas médicas, no Egito, são o livro de Heródoto, “História”, e o de Deodoro de Sicília, “Livro Sagrado”, os papiros que receberam os nomes das pessoas que divulgaram os respectivos conteúdos, Smith, Eberth.

Do mesmo modo que na Mesopotâmia, no Egito no segundo milênio a.C., também:

– Existiam as três Medicinas – divina, empírica e oficial – que se relacionavam em maior ou menor dimensão;

– Não existiam processos teóricos capazes de estruturar a Medicina oficial fora das ideias e crenças religiosas;

– Os tratamentos eram espécies de receitas de bolo, usadas sem variações. Contudo, algumas delas são particularmente muito interessantes porque além de prescreverem corretamente, como o uso do digital para as doenças do coração, adicionavam prognósticos, em duas vertentes, as doenças curáveis e as incuráveis;

– O médico era um especialista social reconhecido e remunerado pela administração do faraó;

– Os médicos também identificados com nomes diferentes, prestavam serviço em diferentes áreas do reino: na corte, templos, minas, cidades conquistadas;

É possível que os conflitos entre médicos e pacientes não tenham alcançado níveis suficientemente intensos para gerar respostas junto à administração do reino. No Egito, do segundo milênio a. C., não se conhecem registros específicos de códigos que regessem, a exemplo do de Hammurabi, as práticas médicas.

3. Na Grécia, entre os séculos 7 e 5 a.C.

As principais fontes históricas são os dois livros de Homero, Ilíada e Odisseia, que fornecem informações quanto à existência de práticas médicas semelhantes às da Mesopotâmia e do Egito: apesar de existir a Medicina-oficial e médicos reconhecidos socialmente, eram muito fortes as relações das práticas médicas com deuses e deusas curadores e/ou provocadores de doenças.

Como nas culturas que se desenvolveram nas margens de rios e lagos férteis da Mesopotâmia, da Índia e do Nilo, na Grécia homérica, não existia um processo teórico para entender a Medicina fora das crenças e idéias religiosas.

Do mesmo modo, apesar dessa forte ligação, também os representantes das três Medicinas, divina, empírica e oficial, também pensaram e praticaram tratamentos, com claros registros nos livros de Homero, para controlar a dor e ampliar os limites da vida, claramente identificados com uma Medicina que não tinha vínculo com os panteões. Esse imbróglio da origem do pensamento grego que antecedeu a fase seguinte, a da Medicina hipocrática, também ajuda a compreender as razões dos porquês, até hoje, em certas circunstâncias, a Medicina-oficial também é pensada atada às crenças e ideias religiosas.

4. Na Grécia dos séculos 4 a.C.

O marco organizador foi a escola de Cós e o principal agente foi Hipócrates. Apesar de saber-se, pelos indicativos etimólogos e linguísticos, que das 72 obras contidas no “Corpo Hipocrático”, como é conhecido o conjunto de textos produzidos na ilha de Cós, somente 12 foram claramente escritos por Hipócrates, esse conjunto filosófico e médico iniciou o processo da separação maior (ainda em curso) da Medicina-oficial em relação às ideias e crenças religiosas.

Um dos mais importantes é o texto de Políbio, genro de Hipócrates, que elaborou a Teoria dos Quatro Humores, a primeira teoria para explicar a saúde e as doenças fora das ideias e crenças religiosas. O corpo seria constituído de quatro humores: sanguíneo, linfático, bilioso amarelo e bilioso preto; quando ocorresse a predominância de um sobre os outros, ocorreria a doença. Por essa razão, é possível considerar esse acontecimento como o primeiro corte epistemológico da Medicina-oficial.

Em conjunto a esse movimento de Cós, algumas obras de Platão, além de reconhecer a notabilidade de Hipócrates, deixam claras algumas características da Medicina grega desse período, com forte influência dos conceitos jônicos da natureza; entre os mais importantes, a noção de físis, como elemento de ligação à materialidade da Medicina.

Nesse contexto, com certa influência jônica das igualdades do clima sobre todos, no extraordinário livro “Leis”, pela primeira vez na História, ficou claro à humanidade que naquele tempo existia marcante diferença entre as práticas médicas nos ricos e pobres. De modo satírico, Platão descreve que quando estão consultando pessoas ricas, os médicos explicam detalhadamente a doença e as características do tratamento. Ao contrário, quando consultam os escravos, as consultas eram rápidas, sem qualquer explicação sobre a doença e o tratamento.

Um exemplo marcante da presença do pensamento jônico é o livro “Dos ventos, águas e regiões”, de autor desconhecido, do século 4 a. C., que assegura a impossibilidade de ser bom médico aos que não conhecem as características das estações do ano, o clima, os ventos, as águas e o curso do Sol.

Um desses textos, o Juramento, voltado ao interesse do doente, mesmo com forte presença das ideias e crenças religiosas ainda no parágrafo introdutório, é o estágio divisor entre o antes e o depois na história da ética médica. Desse modo, a Medicina iniciou outra fase – ser útil ou não ser nociva à vida humana (primum non nocere) – e o médico entendido como o agente dessa ação. A segunda mais importante mudança em relação ao Código de Hammurabi foi a introdução do segredo médico. A vertente dominante para conceber a Medicina como suporte à vida, jamais causando malefício, também está fixada no juramento ao condenar a cirurgia para a retirada da pedra da bexiga, quando sempre determinando a morte do doente.

Ao lado desses extraordinários avanços e controle ético da Medicina-oficial, as Medicinas divina e empírica continuavam presentes na estrutura social. Asclépio, o deus protetor da Medicina, filho de Apolo, também taumaturgo, e da bela Corones, era festejado no dia 18 de outubro. Asclépio foi educado pelo centauro Quirão para ser mais cirurgião do que médico, possivelmente para proteger mais os cirurgiões, já que naquela época as complicações das cirurgias eram mais freqüentes, se comparadas com as práticas médicas não invasivas. Ainda sob a perspectiva de proteger a vida, a construção do panteão de Asclépio deixou o legado de duas filhas, Hígia e Panaceia, vinculadas aos tratamentos clínicos, e dois filhos, Podalírio e Macaão, citados por Homero, que se distinguiram como cirurgiões na guerra de Troia. Nos séculos seguintes, Asclépio também representado por uma serpente enrolada num bastão da madeira, recebeu fama inimaginável, algumas vezes promovendo ressurreições dos mortos e curando todos os doentes que não conseguiam a saúde pelos favores de outros deuses e deusas. Contudo, temendo que a ordem do mundo fosse alterada pelas ressurreições, Zeus determinou a morte de Ascépio com os raios dos Ciclopes.