Amigos do Fingidor

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Uma análise do Eu – 3/13

Zemaria Pinto


Análise da Obra


Em sua primeira edição, de 1912, o Eu tinha 58 poemas, escritos entre 1903 e 1912. Na segunda edição, de 1920, foram acrescentados 46 poemas e o livro passou a se chamar, impropriamente, Eu e outras poesias. Em 1965, na trigésima edição, foram acrescentados mais 39 poemas. Em 1977, após rigorosa pesquisa nos periódicos da Paraíba, Rio de Janeiro e Minas Gerais, da época compreendida entre 1900 e 1914, o professor Zenir Campos Reis logrou acrescentar mais 71 poemas ao acervo de Augusto dos Anjos. São, portanto, 214 os poemas que compõem a obra deste poeta exemplar, produzidos entre os dezesseis e os trinta anos.

As edições ordinárias, entretanto, trazem apenas os 58 poemas da edição original, acrescentando-lhes os 85 poemas recolhidos até a trigésima edição, num total de 143 poemas. A verdade é que boa parte desses poemas fora da edição original seriam desprezados pelo poeta, por não refletirem o seu ideal estético ou por serem obra canhestra de um poeta ainda em formação. Faça-se a exceção necessária para os poemas compostos após a edição do Eu, entre 1912 e 1914, quando o poeta, maduro, tinha o total domínio da sua arte.

Por isso, leitor, trabalharemos apenas com os poemas constantes da edição original do Eu. Aqueles 58 poemas que representam a vontade do artista de vê-los em livro e sobretudo porque nesses poemas está a essência dessa poesia complexa, estranha e assustadoramente bela de Augusto dos Anjos.

Mas antes de começarmos a análise, lembremo-nos de quealguns parágrafos atrás dizíamos ser o título Eu e outras poesias uma impropriedade. Vejamos. Tecnicamente, o vocábulo “poesia” não deveria, nunca, ir para o plural. Poesia é um todo, não é parte. É indivisível, é orgânico. Pronto; para usarmos imagens caras ao nosso poeta: a poesia é um organismo. Os poemas são as partes, os órgãos, que a constituem, dando feição ao todo.

Poesia é o gênero literário, subdivisível nas categorias épica, dramática e lírica. Poesia é a experiência cósmica de um poeta, o conjunto de sua obra. Poesia pode ser também o coletivo do fazer poético em um determinado tempo ou espaço. O poema, por sua vez, é, para efeito didático, a unidade que enforma o todo da poesia: é a composição, um conjunto de versos dispostos de maneira arbitrária pelo poeta, obedecendo a cânones preestabelecidos, estando entre estes, inclusive, a desobediência a cânones preestabelecidos...

   O título mais apropriado, portanto, seria Eu e outros poemas.    

1) Gênero

Embora seja tentador dizer que o Eu contempla todas as variantes do gênero poético (épico, dramático e lírico), devemos, por questões didáticas, adotar apenas aquele sobre o qual não paira nenhuma discussão e que é, sem dúvida, o predominante. Assim, por ser a expressão sentimental e meditativa de um “eu”, individualizado e subjetivo, concluímos que o Eu filia-se ao gênero poesia lírica. A este “eu” a que nos referimos, chamaremos de “eu lírico”. É o sujeito emissor, o que fala, é a “voz” do poema. Não podemos, entretanto, confundi-lo com o poeta, embora, muitas vezes, este se identifique claramente com e como o “eu lírico”. Você poderá observar a sinceridade de Augusto dos Anjos em inúmeros poemas, onde são feitas referências à sua vida pessoal: o pai e o filho mortos, o Engenho Pau d’Arco, a ama de leite Guilhermina etc. Mas não podemos nos esquecer da lição de Fernando Pessoa:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.  

Podemos agrupar os poemas do Eu, numa primeira visada, entre poemas curtos e longos. Entre os curtos, a predominância absoluta é do soneto, que, como você sabe, é um poema de 14 versos. Augusto dos Anjos não varia os seus sonetos, a não ser pelos esquemas das rimas. De resto, usa sempre o verso decassílabo, vazado em dois quartetos e dois tercetos. São 42 sonetos ao todo, sem contar com um incrustado no longo poema Os doentes. Se você gosta de números, já deve ter feito a conta: mais de 70% das composições têm essa forma, o que reforça a ideia do lirismo predominante. Sim, predominante, porque os poemas longos têm um quê entre o épico (narrativo) e o dramático (por se prestar à representação cênica), embora sejam expressão, também, de um “eu lírico”.

Do ponto de vista formal, dois poemas parecem totalmente deslocados dentro do conjunto: Duas Estrofes e Barcarola. O primeiro tem doze versos, distribuídos em dois sextetos (as duas estrofes do título); o segundo, um conjunto de dezoito quadras, em redondilhas maiores (heptassílabos), é o único poema em todo o livro a não usar o verso decassílabo. Veja a ironia: um poema curto, outro relativamente longo. A uni-los o mesmo motivo: a morte.