Amigos do Fingidor

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Uma análise do Eu – 6/13

Zemaria Pinto


O sexto quadro mostra-nos os distantes “bairros da luxúria”, numa alusão à prostituição, explorada, então, com a discrição possível, na periferia das cidades. A visão que se tem é cruel: mulheres doentes, física e moralmente, degradadas ao extremo. Mas elas são vítimas também, e isso não escapa à percepção do “eu lírico”: 

Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,
Estendestes ao mundo, até que, à-toa,
Fostes vender a virginal coroa
Ao primeiro bandido do arrabalde.

O tempo passa, mas os problemas sociais, as feridas sociais, para usarmos a linguagem do nosso autor, continuam as mesmas. Às prostitutas, ele só vê redenção na morte, aqui simbolizada pelos ciprestes: 

Prometem-vos (quem sabe?!) entre os ciprestes
Longe da mancebia dos alcouces,
Nas quietudes nirvânicas mais doces,
O noivado que em vida não tivestes! 

No sétimo quadro, o “eu lírico” vaga “atabalhoadamente pelos becos”, onde tudo lhe lembra morte, luto, ruína. Interrompe seus pensamentos o barulho produzido pelos bêbados da cidade, que, falando línguas estranhas, a língua enrolada dos bêbados, reúnem-se na “promiscuidade das adegas”: 

E a ébria turba que escaras sujas masca,
À falta idiossincrásica de escrúpulo,
Absorvia com gáudio absinto, lúpulo
E outras substâncias tóxicas da tasca. 

Contrastando com a falsa alegria produzida pelos bêbados, surge, no ambiente fechado da taberna, um leproso, um morfético, que a norma culta recomenda, hoje, denominar hanseniano. Novamente, a ferida social aqui exposta é atualíssima: uma doença bíblica, erradicada por completo nos países desenvolvidos, é, ainda hoje, um dos tormentos da saúde pública brasileira. Aliás, o Amazonas, não nos esqueçamos disso, tem o maior índice de incidência de hanseníase do Brasil.

Naquele corpo deformado pela doença, o “eu lírico” vê o reflexo de toda a humanidade. A imagem, terrivelmente bela, tangencia a blasfêmia; mas, observe o adjetivo “negra”, leitor, qualificando a eucaristia; ele inverte, ou melhor, subverte o sentido original da palavra sagrada. É, na verdade, se pensarmos nesses termos, uma manifestação demoníaca, para sensibilizar “aquele povo de demônios”, os bêbados. 

O fácies do morfético assombrava!
- Aquilo era uma negra eucaristia,
Onde minh'alma inteira surpreendia
A Humanidade que se lamentava. 

O sonho do “eu lírico” personificava-se na figura daquele doente: um sonho “inchado, / já podre”, “palpável, / como se fosse um corpo organizado”. Para ele, o sonho acabara.

O cemitério descrito no oitavo quadro é um pesadelo de imagens bizarras, dignas de um contemporâneo filme B: 

Os defuntos então me ofereciam
Com as articulações das mãos inermes,
Num prato de hospital, cheio de vermes,
Todos os animais que apodreciam! 

No seu delírio, “afundado nos sonhos mais nefastos”, o “eu lírico” não perde a consciência social, apontando a opressão à raça negra: 

Eu maldizia o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo a igualitária regra
Da Natureza, atira a raça negra
Ao contubérnio diário das quitandas! 

A referência comercial, o leitor deve estar atento, não é mais à escravidão, capítulo vergonhoso, já ultrapassado, mas sim à opressão sexual que as mulheres negras pobres sofrem. Leia com atenção as duas estrofes que antecedem a estrofe citada acima.

Essa consciência social, leitor, é pouco apontada em Augusto dos Anjos, reconhecidamente um conservador, do ponto de vista ideológico. Mas observe que, assim como em relação aos índios, o que poderia ser considerado um resquício romântico, também com relação às prostitutas e aos negros sua posição é muito clara. Infelizmente, e é preciso repetir isso diariamente, os versos de Augusto dos Anjos continuam cruelmente atuais, inclusive nas alusões à tuberculose e à hanseníase.

Ainda no oitavo quadro, na sequência da visão dos “corpos nus das moças hotentotes”, amanhece o dia, trazendo o “eu lírico” de volta à realidade objetiva. Mas, após aquela experiência, a realidade jamais seria a mesma.

O último quadro reafirma o que já fora dito pela Sombra no poema analisado anteriormente. Lembre-se que ela representa o desconhecido, o inexplicado. Pois bem, Os doentes começa com uma afirmação do “eu lírico” de que “tentava compreender... as substâncias vivas” que a ciência não compreendia. Depois daquela experiência alucinante, ele reconhece-se vencido: 

O inventário do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mamífero vetusto
E a cerebralidade de um vencido.   

Observe como o “eu lírico” se nomeia como o próprio poeta. Mas não se engane: as experiências do poema foram “vividas” por um personagem, que nós, insistentemente, chamamos de “eu lírico”, e não de Augusto dos Anjos. Na sequência, ele entende que tudo aquilo que fora vivido com tanta intensidade à noite, como um sonho macabro, à luz do dia apresenta-se, sem quaisquer subterfúgios fantásticos, como a desagregação da humanidade como ele a via para o surgimento de uma outra, inteiramente renovada e sem vícios: 

A ruína vinha horrenda e deletéria
Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Da matéria em fusão que ainda há no centro,
Para alcançar depois a periféria!
(...)
A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstrato que não morre
Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,
Parecia também desagregar-se! 

“O gênio procriador da espécie eterna” falhara e falira. Mas o “eu lírico”, “uma sobrevivência de Sidarta”, o Buda, na “filogênese moderna”, isto é, na história da evolução das espécies, sente nascer-lhe n’alma, “o começo magnífico de um sonho”: uma “outra Humanidade”, composta pelos descendentes dos que não se deixam adoecer, dos que acreditam que “contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!” 

Entre as formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo! 

O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva noturna,
O vagido de uma outra Humanidade!   

A conclusão a se tirar deste magnífico poema, depois que identificamos o tema principal a partir da leitura do Monólogo de uma Sombra (e constatamos que ele está aqui, por inteiro), beira a simplicidade: a evolução não tem limites e aplica-se a todos os campos da experiência humana, por isso os vencidos serão sempre substituídos pelos mais fortes. E essa força não é física: antes, é moral. São os que se deixam vencer pelos vícios e pelas próprias fraquezas, são os incapazes de lutar que fazem parte dessa humanidade doente. Mesmos os humilhados, os derrotados fisicamente (como os índios e os negros, na concepção de Augusto dos Anjos), podem redimir-se pela luta, mostrando que são, moralmente, eticamente, superiores aos seus algozes - estes, sim, doentes.

A partir da leitura de Os doentes, ilustramos o uso dos principais motivos ou recorrências da poesia de Augusto dos Anjos: vencidos, cidades, doenças, morte, cadáveres, cemitérios, vermes e micróbios. A leitura dos demais poemas poderá comprovar o que afirmamos. Para começar, são indispensáveis Psicologia de um vencido, Idealização da humanidade futura e O deus-verme.