Zemaria Pinto
2) Tema e motivos a partir da análise de dois poemas
Escolhemos uma maneira diferente para trabalhar o tema (a idéia central) e os motivos (as recorrências que levam ao tema). Como este é um trabalho didático, partimos de uma situação pressuposta ou conhecida intuitivamente para uma comprovação. A análise de um poema para demonstrar algo que se espalha por toda a obra é temerária, mas ao leitor vai caber o prazer de comprovar nossas teses integralmente: não vamos lhe dar o peixe – vamos lhe mostrar como se pesca. E se tivéssemos que escolher os cinco melhores poemas de Augusto dos Anjos, com certeza os dois poemas analisados a seguir estariam entre eles.
Tema: Monólogo de uma sombra – Não seria muito pretensioso de nossa parte definir um tema central, agregador entre tantos outros, para uma compreensão mais imediata do Eu. A sua leitura nos deixa tão dentro de uma certa atmosfera, que parecemos envolvidos por um único assunto. Vamos procurá-lo, pois isso deverá facilitar a investigação dos diversos motivos, que se espraiam por todo o livro.
Observe, leitor, o poema Monólogo de uma sombra. Releia-o. Não era incomum, à época, iniciar um livro, especialmente o primeiro do poeta, com um poema que dissesse ao leitor do seu projeto poético. Antecedentes ilustres de Augusto dos Anjos fizeram isso: Olavo Bilac, com Profissão de Fé, Cruz e Sousa, com Antífona. Pois bem, Monólogo de uma sombra nos dá conta do que pretende Augusto dos Anjos em sua poesia. Se não, vejamos.
Como o poeta se sabe ínfimo diante do universo, o seu discurso é atribuído a uma Sombra, metáfora do desconhecido, do incognoscível, daquilo que não se pode compreender, porque está além do alcance das ciências:
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Polipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
Veja que a fala da Sombra já traz todos os elementos que enformam a poesia de Augusto dos Anjos: a influência do evolucionismo monista de Haeckel e Spencer, o pessimismo derivado de Schopenhauer, as influências literárias de Baudelaire e Shakespeare e a plástica de Rembrandt:
Com um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!
(...)
É o despertar de um povo subterrâneo
É a fauna cavernícola do crânio
- Macbeths da patológica vigília,
Mostrando, em rembrandtescas telas várias,
As incestuosidades sanguinárias
Que ele tem praticado na família.
Somente a arte pode redimir o fracasso humano. Somente a arte pode libertar o homem da rede de misérias em que ele se envolveu, moral e fisicamente. Mas poucos são os que têm o privilégio de percebê-lo. Poucos se dão à contemplação artística. Desta forma, cabe ao artista manifestar-se unicamente pela dor. A sua dor é a dor universal. Manifestando-a, ele denuncia a corrupção a que está submetida a humanidade. Essa é a sua alegria.
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.
Percebeu, leitor, o que Fernando Pessoa queria dizer ao acusar o “fingimento” do poeta? Você notou que a Sombra admite que somente a “dor estética”, isto é, a dor forjada com arte, a dor “fingida” (não necessariamente sentida), pode proporcionar alegria a quem se entrega à contemplação artística? Este é o projeto de Augusto dos Anjos: mostrar-nos a degradação humana de maneira estética. Para isso, ele se serve das ciências e das artes. Para o “eu lírico”, que só se manifesta nas três últimas estrofes do poema (o que lhe dá características indiscutíveis de poema dramático), o que ele ouvira da Sombra era a manifestação da própria natureza divinizada:
Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue humano imerso,
Prostituído, talvez, em suas bases...
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.
Durante muito tempo, leitor, a crítica mais apressada acusou a “incoerência”, a “falta de nexo” da poesia de Augusto dos Anjos. Pois ele não sabia disso?
O que podemos concluir? Monólogo de uma sombra engendra um postulado ético, denunciando a degradação moral e física a que o homem está submetido, e um postulado estético, ao propor uma nova maneira de fazer poesia a partir da “expressão da dor” calcada na realidade vivida, o que atropelava a sorridente poesia parnasiana, bem como a hermética poesia simbolista. Esses dois postulados estão presentes, quase sempre associados, em todos os demais poemas do Eu, compondo o seu tema: a degradação humana vista pela estética da dor. Isso mostra o quanto o autor tinha consciência do seu projeto de poesia, construindo uma obra pequena, mas consistente, sólida.