Amigos do Fingidor

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Uma análise do Eu – 5/13

Zemaria Pinto


Motivos: Os doentes – A tese anteriormente exposta deve ser provada; afinal, chegamos a ela através da leitura de um único poema. Observe, leitor, algumas recorrências, a que chamaremos de motivos, semeadas no Eu: doenças, morte, cadáveres, cemitérios, micróbios, vermes. Para você que já leu (releu?) o livro, nenhuma dessas palavras soa estranha; elas estão presentes a cada página do nosso objeto de estudo.

Observe a sequência lógica que vai das doenças até os vermes: é todo o processo de degradação física do ser humano. Ao homem são nenhuma daquelas palavras amedronta. Ao homem (nos referimos à espécie) degradado, entretanto, elas representam o caminho a percorrer. O caminho de um derrotado, de um vencido. Este é um outro motivo assaz explorado por Augusto dos Anjos. É nas cidades, mais outro motivo, que esses vencidos se aglomeram, constituindo a grande massa da degradação humana. E observe que, se uma situação leva a outra, numa sequência lógica, podemos também vê-las aos pares: vencidos/cidades, doenças/morte, cadáveres/cemitérios, micróbios/vermes. Assim, o homem, vencido, um habitante das cidades decadentes, acometido de uma doença, sofre até a morte; o cadáver, naturalmente, será levado para o cemitério, onde será pasto para micróbios e vermes.

Essa degradação física serve de metáfora para a degradação moral. Observe o poema Os doentes. Dividido em nove quadros, é o mais longo do livro, nos seus 438 versos. A “estética da dor”, a que nos referimos antes, é potencializada ao máximo. O “eu lírico” passeia pela cidade, e o que ele vê? Doença. Doentes físicos e morais. Mas ele é um vencido, “coberto de desgraças”, que procura entender in loco o que nem seus mestres, “nem Spencer, nem Haeckel compreenderam”:

Como uma cascavel que se enroscava
A cidade dos lázaros dormia...

Observe a plasticidade desses versos, leitor. A cidade (qualquer cidade) recebe dois atributos que determinam sua forma em nosso imaginário: cascavel e lázaros. O primeiro vocábulo é um símbolo de veneno, traição e morte. O segundo, na acepção primitiva significa leprosos, mas aqui ele se reporta ao personagem bíblico, simbolizando doenças incuráveis. A cidade dos doentes terminais dormia, como uma serpente, preparada para instilar sua peçonha nos incautos, contaminando-os, tornando-os lázaros também.

No segundo quadro do poema, o “eu lírico” contempla a paisagem noturna da “urbe natal do Desconsolo”. A noite apresenta-se calma, ainda que o vento, fantasmagórico e convulso, pareça entoar um “pseudosalmo”, uma falsa oração.

O terceiro quadro mostra o “eu lírico” entre os tuberculosos:

Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!

Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!

Permita-nos, leitor, um breve comentário extraliterário: a tuberculose é hoje uma doença absolutamente controlada, embora (estamos no Brasil...) ainda não erradicada. Mas durante muito tempo, foi uma doença terrível, que ceifou milhões de vidas. Observe as biografias dos nossos autores do período romântico em diante. Muitos deles morreram jovens, quase todos de tuberculose. Não nos furtemos a uma comparação terrível: a tuberculose representava para o tempo de Augusto dos Anjos o que a AIDS representa para o nosso tempo. 

No quarto quadro, o “eu lírico” comenta o destino dos indígenas do continente americano. Note a atualidade desses versos, você, que deve estar saturado de ouvir falar em “descobrimento”:

Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.

A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!

Falamos tanto em Cabral, enquanto Augusto dos Anjos põe o dedo na ferida: foi Colombo o primeiro a aportar nas terras americanas e a matar e a saquear e a humilhar. Os índios estão também doentes, porque não existem enquanto cidadãos. E Augusto dos Anjos escreveu isso há 80 anos, leitor!

E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra,
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!

A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em diante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda contra a flecha!

No quinto quadro, a angústia atinge um paroxismo tal que o “eu lírico” identifica-se com a podridão que o cerca e quer absorvê-la para, assim, tentar anulá-la:

Naquela angústia absurda e tragicômica
Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorção neurótica de um bicho
Que ingeriu 30 gramas de noz-vômica.

E, como um homem doido que se enforca,
Tentava, na terráquea superfície,
Consubstanciar-me todo com a imundície,
Confundir-me com aquela coisa porca! 

Paradoxalmente, entretanto, após o reencontro com “a saudade inconsciente da monera”, que havia sido sua “mãe antiga”, ele recobra a calma, mas não o equilíbrio, ao concluir:

Quando eu for misturar-me com as violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!

No Monólogo de uma sombra, o “eu lírico” já dissera que somente a Arte “abranda as rochas rígidas”, por isso, em Os doentes, ele diz que, após sua morte, sua poesia “reviverá, dando emoção à pedra”, e será ouvida por todos. E ele acertou em cheio, tanto que estamos todos aqui, a nos ocupar dela. Quanto a ser maior que a Fedra (tragédia do francês Racine, escrita no século 17), tudo bem, parece até que ela entrou aí só para facilitar a rima com “pedra”. Agora, quanto à Bíblia, leitor, sem qualquer sectarismo de ordem religiosa, creditemos ao ambiente insano em que se encontrava o “eu lírico”. Não deixa de ser uma licença poética...