Amigos do Fingidor

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Antonin Artaud e a estética da vertigem 2/2

Zemaria Pinto



Da ruptura com os surrealistas, em 1926, Artaud passa para o Théatre Alfred Jarry, que em 3 anos produziu vários espetáculos, cuja tônica, a par da inovação e da polêmica, eram as dificuldades financeiras. As idéias sobre o Teatro da Crueldade nascem a partir daí. Les Cenci, recontada a partir de Shelley e Stendhal, é fracasso de público e de crítica. Em 1936, consegue uma subvenção para ir ao México pesquisar rituais dos índios Tarahumaras. O poeta Cláudio Willer, tradutor de Artaud e dos beats, anota, na introdução a Escritos de Antonin Artaud: “depois de uma sucessão de fracassos (incluindo palestras nas quais o público abandonava a sala ou o vaiava) e que culmina com Les Cenci, Artaud resolve mudar tudo, trocar o texto pela vida e vivenciar pessoalmente a realidade mítica que tanto o fascinava e que era tematizada na sua obra.”

Artaud por Man Ray.
De volta a Paris, Artaud está mudado. O misticismo experimentado no México o transtornou e ele passa a viver uma realidade à margem, como profeta de um apocalipse próximo. É internado por 9 anos, passando por sucessivos sanatórios. Em 1946, findo o pesadelo da guerra, um grupo de intelectuais, integrado, entre outros, por Sartre, Simone de Beauvoir, Camus, Picasso e Paul Éluard, mobiliza-se para tirá-lo do sanatório de Rodez, colocando-o como “paciente voluntário” numa clínica nos arredores de Paris, onde ele passou a residir no mesmo quarto onde morrera Gérard de Nerval. Ali morreria, a 4 de março de 1948.

Apesar de dedicado inteiramente ao teatro, Artaud dizia-se poeta. Ele que, da pouca poesia que escrevera, renegara seus escritos de juventude. Mas essa preferência se explica pela etimologia da palavra, oriunda do grego, que significa, literalmente, “aquele que faz”. E Artaud fez: deixou uma obra vastíssima, entre ensaios, palestras, peças. Suas cartas não são meras correspondências de um marginalizado, são autênticos libelos contra todas as formas de repressão. Para se avaliar a atualidade relativa de Artaud, Willer nos informa que sua Carta aos Reitores das Universidades Européias, de 1925, serviu como panfleto revolucionário na Sorbonne, em 1968 − “a mesma Sorbonne onde suas conferências eram vaiadas em 1931 e 33.”

De toda sua obra, magnífica na extensão, indecifrada no conteúdo, e inacessível na sua essência, resta-nos a apreciação da superfície. A revolução proposta ainda é “nada mais que o vagido de um ser que mal começa a tornar conhecido seu desejo através de nós”, como escreveu Breton sobre o Romantismo, em plena revolução surrealista. Louco, drogado, profeta, o poeta Artaud mergulhou fundo na vertigem. E até o fim disse não.

Essa citação de Breton, no Segundo Manifesto Surrealista, de 1930, precisa ser lida integralmente para que se possa entender melhor o meu texto Antonin Artaud, do Êxtase à Vertigem, introdução ao livro Bela Crueldade, de Jorge Bandeira: “ter cem anos de existência é para ele a juventude, e o que chamam erradamente de sua fase heróica nada mais é que o vagido de um ser que mal começa a tornar conhecido seu desejo através de nós, sendo que, se admitirmos que tudo aquilo que foi pensado antes dele − “classicamente” − é o Bem, quer incontestavelmente todo o Mal.”

A Modernidade oscila entre o Mal e a Loucura. No meio destes, a solidão é o reflexo da liberdade que o artista logra conquistar para ser fiel à sua criação. A tentação do abismo pode ser uma viagem sem volta. Ao artista, dividido entre o homem-social e o homem-criador, resta a fuga pelos caminhos obscuros do misticismo ou das drogas. Ou de ambos.

Das experiências de Baudelaire, escrevendo sob o efeito do haxixe e do ópio, até a iniciação de Huxley com a mescalina, descrita em As portas da percepção, o Surrealismo abriu às artes, e em particular à literatura, a possibilidade de rejeitar o racionalismo e a lógica, enveredando pelo desconexo, pelo absurdo. O delírio paranóico, síntese lúdica do real desprezado, era o ideal dos que buscavam a alienação como forma de atuar criticamente na sociedade do entreguerras. Experimentar a loucura sem perder o equilíbrio passou a ser o fim de uma arte que buscava a interpretação sensorial do mundo. O artista não pode sentir da mesma forma que o homem comum, logo, ao homem duplo, dividido, deve compensar a transcendência da percepção.
Artaud no fim: drogas, asilos, eletrochoques.
Quando Antonin Artaud escreveu a versão definitiva de A dança do peiote, relatando sua passagem e iniciação entre os tarahumaras, no México, já estava num estágio avançado dessa caminhada: a vertigem dos loucos que não têm mais poder sobre si. O que Artaud buscara sempre, o domínio da linguagem para fazê-la explodir para além das convenções sociais e das limitações da arte ocidental, acaba por levá-lo à solidão libertária da loucura. Como Hölderlin e Nietzsche, Artaud permanece indecifrado: “eu não separo o meu pensamento da minha vida”. O paradoxo que se instala, o artista à frente de seu tempo, só pode ser aceito a partir da compreensão de uma certa metafísica da dor: “tudo o que não for um tétano da alma, ou não provier de um tétano da alma, não é verdadeiro e não pode ser aceito como poesia”. A crueldade, sobre a qual ele arquitetava a derrocada da linguagem, era sobretudo consigo mesmo − o “outro”, aos poucos, tomava o lugar do “eu” solitário, rompido, fragmentado, buscando a libertação.