Jorge Tufic
Com a transdicção virtual e a técnica
singular do fazer, cujo objetivo é o
poema, a poesia passou a distinguir-se da literatura como arte de bem escrever,
mas, na afirmativa de Cassiano Ricardo, “toda poesia é literatura, sem ser
prosa”. Ezra Pound contorna o penhasco e dispara: depois de Stendhal tê-la
visto e denunciado, a farolagem poética dos séculos precedentes foi substituída
pela nova prosa, que era criação do próprio Stendhal e de Flaubert. A poesia
permaneceu então como arte inferior até emparelhar-se com a prosa desses dois
autores, o que alcançou fazer, em grande parte, com base no DICHTEN =
condensare. “(...) Não quer isso dizer que ela fosse algo mais etéreo e mais
imbecil que a prosa, e sim algo que estava carregado de potencial mais
elevado”. Tente-se acrescentar ao raciocínio do grande crítico o fato de que
esse potencial se enraíza nas formas de arte mais primitivas, com a
predominância do mito, que se engendra e se desenvolve na origem da religião,
da filosofia e da própria criação estética, sempre carregada de sentimentos e
impulsos que medeiam a linguagem dos sonhos. Pouco enfaticamente, no entanto,
Pound o reconhece. Homo sapiens, homo
faber, homo ludens (Huizinga). O jogo de toda a vida permeado pelos ganchos
do sonho, afluentes do mito. Potencial
elevado = forma superior de resposta aos atalhos da luz e da treva numa
única síntese estabilizadora. Dichten = condensare. As antenas da raça podem
estar, de repente, numa espécie de “Canto ao sol da maloca”, na quarta escala
vocal de um pajé, ou, simplesmente, num erro de revisão que muda o título de
uma crônica de jornal. É o próprio mestre do ABC que ensina: “O som fica melhor
lá onde o idioma claudica.”
Ora
bem, mas não vamos repetir, aqui, uma certa arenga sobre o que seja e o que não
seja poesia. A nosso ver, Cassiano Ricardo e os teóricos da poesia concreta já
quiseram ou pretenderam esgotar este assunto. Por essa importante contribuição
de um passado recente, quem não sabe estabelecer, hoje, a diferença entre prosa
e poesia? Prosadores inventivos como Guimarães Rosa e “transformadores” como
João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar, revalorizam a linguagem poética no
exercício da prosa ou esticam a massa do poema até disfarçá-lo numa outra
coisa, aparentemente estranha e sem nome. Isto é poesia. De qualquer modo,
porém, um poema é um poema, e uma prosa é uma prosa. Pode também acontecer de
um poema não conter nenhuma poesia, seja em versos livres ou não, sendo
“escusado dizer (e agora a palavra é de Cassiano Ricardo) que estas distinções
de ordem técnica e forma não significam – sob um critério de valor –
desconhecer certas obras-primas que são os “poemas em prosa” de Baudelaire
(“Petits Poèmes em Prose”), de Rimbaud (“Iluminations”) ou os poemas também em
prosa de Saint-John-Perse (“Anabase” ou “Vents”) e, pra não irmos tão longe, os
que se praticam entre nós: os de Raul Pompéia, os de Aníbal Machado, os de
Manuel Bandeira, os de Mário Quintana etc...”
À
parte, no entanto, os ismos do ofício, podemos afirmar que a poesia é indefinível,
o verso um artifício e o poema um desafio, uma armadilha, algo parecido com a
figura emblemática de um touro que se tomasse de asas, para voar. É desse ponto
de vista que a criação poética, ao ver de L. Ruas, torna-se um problema
complexo, um problema vital do poeta-homem, cuja “situação humana, ou, se
quisermos, existencial do poeta não é um simples fato de significação anedótica
mas, ao contrário, é algo essencial e inerente à obra de arte” (“Os Graus do
Poético”, L. Ruas, Ed. Rio Mar,
Manaus-Am, 1979). Encarado, assim, por uma ótica transcendental, o fenômeno da
criação poética ou da obra de arte encontra, em Tasso da Silveira, uma síntese
perfeita, quando diz: “Na obra de arte se fundem três mistérios diferentes. O
mistério do indivíduo, o mistério do ser e o resultante destes dois, a catálise
do impulso criador, o mistério da expressão” (idem). Além da forma e da
evolução semântica das palavras, além do sentimento do tempo ao longo de anos
aprofundado através dos grandes inventores, mudara, porventura, a essência da
poesia? Achamos que não. Outras conquistas, é certo, dotaram o faber de novas técnicas e novos
processos. Na ponta do exagero, contudo, degringola a cavalice do “pintor” que
tenta esboçar uma tela com um rabo de cavalo melado na tinta, e sucumbe o
eventual consumidor de LSD quando pensa que, “numa boa”, será capaz de produzir
alguma coisa semelhante aos poemas de Vicente Huidobro.