Amigos do Fingidor

quinta-feira, 10 de maio de 2012

A trajetória do mito nA maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê


Zemaria Pinto

Teatro indígena, teatro urbano. De um lado, a reflexão sobre a mitologia amazônica, sem exotismo, sem folclore, usando a tragédia clássica como paradigma. De outro, a fragmentação, o humor, o sarcasmo, o deboche mesmo, “o riso como arma contra a alienação”. Baseado na tradição dos índios tucanos, do alto rio Negro, Márcio Souza vai muito mais longe, reinventando mitos milenares e construindo uma fábula moderna, virando pelo avesso a tradição européia do fabulário infanto-juvenil. Equivocadamente, a peça é indicada àquele público. É bem verdade que as crianças deliciam-se com as desventuras do Sapo e de sua amada Moça Juruti, porém, não se deve perder a perspectiva crítica, posto que A maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê não se limita a contar uma história, mas, num exercício sutil de metalinguagem, questiona a própria maneira de contar histórias às crianças.

Numa inversão dos postulados europeus, onde bruxas más transformam gente em bicho e são devidamente punidas ao final da trama, “Tarô-Bequê” revê o lugar-comum, transformando o sapo em guerreiro apaixonado pela vida. O próprio desfecho da peça, trágico, encerra o postulado didático do “final infeliz”, muito mais próximo da realidade cotidiana, onde a felicidade é fragmentada e, quase sempre, imperceptível. Moça Juruti retornada em tajá e o guerreiro, em sapo, transformam-se no remate mais sensato dessa história.

Mas não é apenas na estrutura formal da fábula que Márcio Souza trabalha com originalidade. Num exercício intertextual primoroso, milenares mitos gregos confundem-se com a cultura tucana, numa curiosa miscelânea: “Tarô-Bequê” revive os mitos de Prometeu e de Orfeu, nos episódios do roubo do fogo e na descida à maloca dos mortos, promovendo um inusitado encontro entre a mitologia grega e a mitologia amazônica. Até onde o autor foi fiel aos tucanos pouco importa: a obra literária transcende quaisquer pretensões antropológicas.

Num mundo dominado por deuses inconstantes e inconsequentes, Prometeu destacou-se como um benfeitor da humanidade, tanto ao utilizar-se de seus dons proféticos quanto por suas habilidades guerreiras. Das inúmeras lendas que o cercam, o roubo do fogo para dá-lo ao homem, que ele criara, é a mais espetacular. Como castigo, Zeus prendeu-o com grilhões de aço no cimo do Cáucaso, determinando que uma águia lhe comesse o fígado durante o dia, e este se renovasse, incessantemente, à noite, num castigo eterno. Prometeu foi salvo por Hércules, mas esta é uma outra história.

Para Gaston Bachelard, o mito de Prometeu ilustra a “vontade humana de intelectualidade”. Isto é, a vontade de saber, de ir além do conhecido, sem temer a barreira imposta por pais, mestres ou governantes. Em “Tarô-Bequê”, Márcio Souza trabalha o imaginário tucano com ironia: o sapo transformado em guerreiro sai em busca do fogo para permitir que sua Juruti, que fora gerada a partir de um pé de tajá, pudesse... cozinhar. Nada mais óbvio em um casal recém-transformado em gente que procurar conhecer a fundo o mais elementar do comportamento humano. Cainhamé, o Pai do Mato, responsável pela metamorfose do casal, já alertara: “não basta moldar um feixe de nervos feito gente para isso ser gente.”

Tendo conseguido ludibriar o Urubu-Rei, o guardião do fogo, Tarô-Bequê encontra-se com sua própria tragédia na maloca dos mortos. Revivendo uma das mais exploradas sequências da literatura universal – o contato e o embate com as forças demoníacas –, Tarô-Bequê sai em busca de Juruti, sequestrada pelo infame Urubu-Rei. Desde Homero, que fez Odisseu descer até o Hades, passando por Virgílio, cujo herói Eneias navegou pelo Averno, guiado pela Sibila, este tem sido um apelo clássico da literatura universal. No século XIV, Dante Alighieri, já totalmente envolvido pela teologia cristã, visitou o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, em busca da suprema felicidade de rever Beatriz, sua amada morta, tornada eterna por suas virtudes. Nos autores citados, ou em Goethe, Shakespeare ou Guimarães Rosa, a figura do demônio e do “reino do mal” são contrapontos à personificação do bem ou ao seu triunfo. Márcio Souza, entretanto, prefere beber na fonte mais primitiva do mito: a jornada de Orfeu aos infernos, em busca de Eurídice. Tal como Orfeu, Tarô-Bequê sai em busca de Juruti na maloca dos mortos, com uma limitação determinada pela própria emoção, pelo próprio sentimento. Tal como Orfeu, Tarô-Bequê fracassa. Mesquinho, talvez, mas humano, demasiadamente humano. Terminava ali seu aprendizado de quão seria duro ser um homem.

O professor Marcos Frederico Krüger, no agora indispensável Amazônia: Mito e Literatura, vê nA maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê uma alegoria da Amazônia e, num sentido mais restrito, do Amazonas: 

A derrota de Tarô-Bequê corresponde ao subdesenvolvimento crônico da região e do Estado, aos quais têm sido dadas poucas chances de ascensão econômica. O sapo representa a fauna amazônica, sendo um animal que quase sempre causa asco. E assim ele deverá permanecer, tal como a Amazônia, vítima, inclusive, de uma espécie de colonialismo interno brasileiro, posto que a preferência tem sido dada à porção “rica” do país, o Sul e o Sudeste. (...) Também a companheira de Tarô-Bequê, Moça Juruti, retroagiu à condição de simples tajá, a fim de representar a flora da região e a necessidade de que não haja modificações substanciais no quadro geral de atraso. Quanto ao fracassado Cainhamé, força simbólica da natureza regional, vemo-lo como o triunfo dos valores da civilização adventícia, que, historicamente, têm dizimado os povos da floresta e relegado a Amazônia à condição de mera paisagem exótica. 

Encenada repetidas vezes, desde 1975, A maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê mantém-se atual como um clássico, na sua essência, renovando-se a cada montagem. E se lá no primeiro parágrafo desta digressão deixei entrever que o “Sapo” é uma peça “adulta”, revejo classificação tão simplificadora: “Tarô-Bequê” é uma festa para os olhos das crianças e para a mente dos adultos. Ou vice-versa.  

Obs: texto publicado em 1995, no Amazonas em tempo.