Zemaria Pinto
Teatro indígena,
teatro urbano. De um lado, a reflexão sobre a mitologia amazônica, sem
exotismo, sem folclore, usando a tragédia clássica como paradigma. De outro, a
fragmentação, o humor, o sarcasmo, o deboche mesmo, “o riso como arma contra a
alienação”. Baseado na tradição dos índios tucanos, do alto rio Negro, Márcio
Souza vai muito mais longe, reinventando mitos milenares e construindo uma
fábula moderna, virando pelo avesso a tradição européia do fabulário
infanto-juvenil. Equivocadamente, a peça é indicada àquele público. É bem
verdade que as crianças deliciam-se com as desventuras do Sapo e de sua amada
Moça Juruti, porém, não se deve perder a perspectiva crítica, posto que A maravilhosa
história do sapo Tarô-Bequê não se limita a contar uma história, mas, num
exercício sutil de metalinguagem, questiona a própria maneira de contar
histórias às crianças.
Numa inversão dos
postulados europeus, onde bruxas más transformam gente em bicho e são
devidamente punidas ao final da trama, “Tarô-Bequê” revê o lugar-comum,
transformando o sapo em guerreiro apaixonado pela vida. O próprio desfecho da
peça, trágico, encerra o postulado didático do “final infeliz”, muito mais
próximo da realidade cotidiana, onde a felicidade é fragmentada e, quase
sempre, imperceptível. Moça Juruti retornada em tajá e o guerreiro, em sapo,
transformam-se no remate mais sensato dessa história.
Mas não é apenas na
estrutura formal da fábula que Márcio Souza trabalha com originalidade. Num
exercício intertextual primoroso, milenares mitos gregos confundem-se com a
cultura tucana, numa curiosa miscelânea: “Tarô-Bequê” revive os mitos de
Prometeu e de Orfeu, nos episódios do roubo do fogo e na descida à maloca dos
mortos, promovendo um inusitado encontro entre a mitologia grega e a mitologia
amazônica. Até onde o autor foi fiel aos tucanos pouco importa: a obra literária
transcende quaisquer pretensões antropológicas.
Num mundo dominado
por deuses inconstantes e inconsequentes, Prometeu destacou-se como um
benfeitor da humanidade, tanto ao utilizar-se de seus dons proféticos quanto
por suas habilidades guerreiras. Das inúmeras lendas que o cercam, o roubo do
fogo para dá-lo ao homem, que ele criara, é a mais espetacular. Como castigo,
Zeus prendeu-o com grilhões de aço no cimo do Cáucaso, determinando que uma
águia lhe comesse o fígado durante o dia, e este se renovasse, incessantemente,
à noite, num castigo eterno. Prometeu foi salvo por Hércules, mas esta é uma
outra história.
Para Gaston
Bachelard, o mito de Prometeu ilustra a “vontade humana de intelectualidade”.
Isto é, a vontade de saber, de ir além do conhecido, sem temer a barreira
imposta por pais, mestres ou governantes. Em “Tarô-Bequê”, Márcio Souza
trabalha o imaginário tucano com ironia: o sapo transformado em guerreiro sai
em busca do fogo para permitir que sua Juruti, que fora gerada a partir de um
pé de tajá, pudesse... cozinhar. Nada mais óbvio em um casal recém-transformado
em gente que procurar conhecer a fundo o mais elementar do comportamento
humano. Cainhamé, o Pai do Mato, responsável pela metamorfose do casal, já
alertara: “não basta moldar um feixe de nervos feito gente para isso ser
gente.”
Tendo conseguido
ludibriar o Urubu-Rei, o guardião do fogo, Tarô-Bequê encontra-se com sua
própria tragédia na maloca dos mortos. Revivendo uma das mais exploradas sequências
da literatura universal – o contato e o embate com as forças demoníacas –,
Tarô-Bequê sai em busca de Juruti, sequestrada pelo infame Urubu-Rei. Desde
Homero, que fez Odisseu descer até o Hades, passando por Virgílio, cujo herói
Eneias navegou pelo Averno, guiado pela Sibila, este tem sido um apelo clássico
da literatura universal. No século XIV, Dante Alighieri, já totalmente
envolvido pela teologia cristã, visitou o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, em
busca da suprema felicidade de rever Beatriz, sua amada morta, tornada eterna
por suas virtudes. Nos autores citados, ou em Goethe, Shakespeare ou Guimarães
Rosa, a figura do demônio e do “reino do mal” são contrapontos à personificação
do bem ou ao seu triunfo. Márcio Souza, entretanto, prefere beber na fonte mais
primitiva do mito: a jornada de Orfeu aos infernos, em busca de Eurídice. Tal
como Orfeu, Tarô-Bequê sai em busca de Juruti na maloca dos mortos, com uma
limitação determinada pela própria emoção, pelo próprio sentimento. Tal como
Orfeu, Tarô-Bequê fracassa. Mesquinho, talvez, mas humano, demasiadamente
humano. Terminava ali seu aprendizado de quão seria duro ser um homem.
O professor Marcos
Frederico Krüger, no agora indispensável Amazônia: Mito e Literatura, vê
nA maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê uma alegoria da Amazônia e, num
sentido mais restrito, do Amazonas:
A derrota de Tarô-Bequê
corresponde ao subdesenvolvimento crônico da região e do Estado, aos quais têm
sido dadas poucas chances de ascensão econômica. O sapo representa a fauna
amazônica, sendo um animal que quase sempre causa asco. E assim ele deverá
permanecer, tal como a Amazônia, vítima, inclusive, de uma espécie de
colonialismo interno brasileiro, posto que a preferência tem sido dada à porção
“rica” do país, o Sul e o Sudeste. (...) Também a companheira de Tarô-Bequê,
Moça Juruti, retroagiu à condição de simples tajá, a fim de representar a flora
da região e a necessidade de que não haja modificações substanciais no quadro
geral de atraso. Quanto ao fracassado Cainhamé, força simbólica da natureza
regional, vemo-lo como o triunfo dos valores da civilização adventícia, que,
historicamente, têm dizimado os povos da floresta e relegado a Amazônia à
condição de mera paisagem exótica.
Encenada repetidas vezes, desde 1975, A
maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê mantém-se atual como um clássico,
na sua essência, renovando-se a cada montagem. E se lá no primeiro parágrafo
desta digressão deixei entrever que o “Sapo” é uma peça “adulta”, revejo
classificação tão simplificadora: “Tarô-Bequê” é uma festa para os olhos das
crianças e para a mente dos adultos. Ou vice-versa.
Obs: texto publicado em 1995, no Amazonas em tempo.