Zemaria Pinto
O homem nasce
livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais,
não deixa de ser mais escravo do que eles.
(Rousseau, na introdução de Do Contrato Social)
Para ser considerado “clássico”, um texto deve passar
por um longo processo de depuração e amadurecimento. Somente o distanciamento
proporcionado pelo tempo poderá dizer se determinada obra ficará ou não.
Fatores subsidiários relacionados aos modismos de cada época também podem
influenciar. Mas quem pode imaginar que um dia, Shakespeare, por exemplo,
deixará de ser editado, lido e encenado? Embora ainda seja muito cedo para
afirmar, após quase 30 anos desde a primeira apresentação, em 1967, na França,
a peça O Arquiteto e o Imperador da
Assíria, do espanhol Fernando Arrabal, traz todos os conflitos e contornos
de um clássico: em um reduzido cenário, dois atores põem a nu a condição
humana, promovendo um desfile dos arquétipos mais caros à civilização
ocidental.
O argumento é simples. O sobrevivente de um acidente
aéreo encontra-se, em uma ilha deserta, com um nativo que nada sabe de
civilização. O inglês Daniel Defoe, há 280 anos, num livro que não é um
clássico da grande Literatura mas é bom entretenimento, já relatara as agruras
de um marinheiro, Robson Crusoe, na mesma situação. Mas se Defoe escreveu seu
romance pregando o retorno a uma natureza “pura”, não deturpada, dentro de uma
estrutura civilizada, divulgando o conceito de educação natural, que viria a
ser sistematizado anos depois por Rousseau, Arrabal parece unicamente disposto
a demonstrar a tese de Hobbes: homo
homini lupus. Pois é a partir dessa lógica que se constrói a peça e as
personagens crescem, ganhando dimensões trágicas.
No relacionamento delirante, orquestrado pelo
civilizado, este se torna o “imperador”, enquanto o selvagem, que com o passar
dos anos vai absorvendo valores culturais do outro, passa a ser o “arquiteto” de uma sonhada “Assíria”. Mas a
relação entre ambos não é hierárquica, uma vez que a solidão empurra-os a jogos
permanentes de faz-de-conta, onde as máscaras podem ser trocadas sem atavios.
Mesmo na “vida real”, no cotidiano da ilha, os papéis se invertem, pois o
selvagem é uma espécie de bruxo, com poderes sobrenaturais e centenas de anos
de existência. Isso explica a inveja que o Imperador sente dele. Fascinado, por
sua vez, com tudo o que o Imperador lhe conta, fantasia ou não, o Arquiteto
tem-lhe ciúmes. O que os move, entretanto, não é apenas a mesquinharia
recíproca, mas, principalmente, amor e ódio, sentimentos extremados que se
tocam e se completam e que os tornam lobos de si mesmos.
Complexa, a
personagem do Imperador transmite ao primitivo Arquiteto toda a angústia da
civilização, nos relacionamentos mãe-filho, noivo-noiva, vítima-carrasco,
juiz-criminoso. Quando não estão se digladiando na pele de suas subpersonagens,
eles se ameaçam mutuamente com o abandono. Ambos se torturam com a
possibilidade da solidão: uma situação-limite contínua, que Arrabal costura com
muito humor e ironia. Ao final, o Imperador induz o Arquiteto a ser juiz e
carrasco, manipulando e fundindo valores antes individualizados. E, como num
jogo de espelhos de possibilidades infinitas, os papéis mais uma vez se
invertem. E o jogo continua, no mesmo movimento circular amor-ódio-amor.
Numa época em que se dava muita importância aos
rótulos vanguardistas, Arrabal identificou-se com a tendência do
“teatro-pânico” (filho dileto do “teatro da crueldade”, de Artaud), que tinha
por fundamento “a exaltação da moral múltipla” e consistia em representar “um
grande cerimonial presidido por confusão, humor, terror, acaso e euforia”. Sem
dúvida, toda essa lista é encontrada na peça de Arrabal, que em nenhum momento
é monótona ou ininteligível, como costuma ser praxe em certa avant-garde tupiniquim.
Texto publicado, no Amazonas em Tempo, em meados dos anos noventa, do século passado!, por ocasião da montagem da peça pelo grupo Elefante Efervescente.