Amigos do Fingidor

quinta-feira, 31 de maio de 2012

A paixão segundo Arrabal


Zemaria Pinto
 

O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles.

(Rousseau, na introdução de Do Contrato Social)



Para ser considerado “clássico”, um texto deve passar por um longo processo de depuração e amadurecimento. Somente o distanciamento proporcionado pelo tempo poderá dizer se determinada obra ficará ou não. Fatores subsidiários relacionados aos modismos de cada época também podem influenciar. Mas quem pode imaginar que um dia, Shakespeare, por exemplo, deixará de ser editado, lido e encenado? Embora ainda seja muito cedo para afirmar, após quase 30 anos desde a primeira apresentação, em 1967, na França, a peça O Arquiteto e o Imperador da Assíria, do espanhol Fernando Arrabal, traz todos os conflitos e contornos de um clássico: em um reduzido cenário, dois atores põem a nu a condição humana, promovendo um desfile dos arquétipos mais caros à civilização ocidental.

O argumento é simples. O sobrevivente de um acidente aéreo encontra-se, em uma ilha deserta, com um nativo que nada sabe de civilização. O inglês Daniel Defoe, há 280 anos, num livro que não é um clássico da grande Literatura mas é bom entretenimento, já relatara as agruras de um marinheiro, Robson Crusoe, na mesma situação. Mas se Defoe escreveu seu romance pregando o retorno a uma natureza “pura”, não deturpada, dentro de uma estrutura civilizada, divulgando o conceito de educação natural, que viria a ser sistematizado anos depois por Rousseau, Arrabal parece unicamente disposto a demonstrar a tese de Hobbes: homo homini lupus. Pois é a partir dessa lógica que se constrói a peça e as personagens crescem, ganhando dimensões trágicas.

No relacionamento delirante, orquestrado pelo civilizado, este se torna o “imperador”, enquanto o selvagem, que com o passar dos anos vai absorvendo valores culturais do outro, passa a ser  o “arquiteto” de uma sonhada “Assíria”. Mas a relação entre ambos não é hierárquica, uma vez que a solidão empurra-os a jogos permanentes de faz-de-conta, onde as máscaras podem ser trocadas sem atavios. Mesmo na “vida real”, no cotidiano da ilha, os papéis se invertem, pois o selvagem é uma espécie de bruxo, com poderes sobrenaturais e centenas de anos de existência. Isso explica a inveja que o Imperador sente dele. Fascinado, por sua vez, com tudo o que o Imperador lhe conta, fantasia ou não, o Arquiteto tem-lhe ciúmes. O que os move, entretanto, não é apenas a mesquinharia recíproca, mas, principalmente, amor e ódio, sentimentos extremados que se tocam e se completam e que os tornam lobos de si mesmos.

 Complexa, a personagem do Imperador transmite ao primitivo Arquiteto toda a angústia da civilização, nos relacionamentos mãe-filho, noivo-noiva, vítima-carrasco, juiz-criminoso. Quando não estão se digladiando na pele de suas subpersonagens, eles se ameaçam mutuamente com o abandono. Ambos se torturam com a possibilidade da solidão: uma situação-limite contínua, que Arrabal costura com muito humor e ironia. Ao final, o Imperador induz o Arquiteto a ser juiz e carrasco, manipulando e fundindo valores antes individualizados. E, como num jogo de espelhos de possibilidades infinitas, os papéis mais uma vez se invertem. E o jogo continua, no mesmo movimento circular amor-ódio-amor.

Numa época em que se dava muita importância aos rótulos vanguardistas, Arrabal identificou-se com a tendência do “teatro-pânico” (filho dileto do “teatro da crueldade”, de Artaud), que tinha por fundamento “a exaltação da moral múltipla” e consistia em representar “um grande cerimonial presidido por confusão, humor, terror, acaso e euforia”. Sem dúvida, toda essa lista é encontrada na peça de Arrabal, que em nenhum momento é monótona ou ininteligível, como costuma ser praxe em certa avant-garde tupiniquim.

Texto publicado, no Amazonas em Tempo, em meados dos anos noventa, do século passado!, por ocasião da montagem da peça pelo grupo Elefante Efervescente.