Zemaria Pinto
O teatro – juntamente com a pintura, a forma mais
antiga de expressão – mantém-se vivo e é ainda a fonte que alimenta grande
parte do nosso imaginário, mesmo nestes tempos de avançada tecnologia e efeitos
especiais. Os grandes autores surgem como ícones de seu tempo, e muitas vezes
superam a literatura, um fenômeno que tem seu maior exemplo em William Shakespeare ,
considerado por boa parte da crítica como o centro do cânone de toda a
literatura universal.
No Brasil, a arte teatral deste século está
intimamente ligada ao nome de Nelson Rodrigues, embora isso não seja uma
unanimidade, afinal o próprio Nelson considerava que “toda unanimidade é
burra”. Mas, a par da polêmica que sempre surge quando o tema é o dramaturgo
pernambucano, não custa nada lembrar seu conterrâneo Manuel Bandeira, para
quem, sem qualquer ranço de bairrismo barato, Nelson Rodrigues era “o maior
poeta dramático da língua portuguesa”.
Nelson Rodrigues era de um tempo em que os profissionais do futebol assumiam suas preferências. (Caricatura de Baptistão) |
Observem que o objeto de nossas observações é o
dramaturgo inquieto, criativo, brilhante. Não o romancista, pífio, ou o
cronista, descartável. Tampouco esse Nelson Rodrigues de “A Vida Como Ela É”,
com textos escritos para urgências jornalísticas(*). Nelson construiu, em 17
peças, uma obra ímpar, sem dúvida a mais consistente da dramaturgia brasileira.
Sábato Magaldi classificou a obra de Nelson Rodrigues
em três grandes grupos: peças psicológicas, peças míticas e tragédias cariocas.
Ao primeiro pertence a obra-prima Vestido
de Noiva, além de A Mulher sem Pecado,
sua primeira peça, o monólogo Valsa n° 6, a comédia Viúva, Porém Honesta e a politicamente correta Anti-Nelson Rodrigues. Ao segundo grupo pertence seu trabalho mais
polêmico, Álbum de Família, censurado
por 22 anos, mais Anjo Negro, Doroteia e Senhora dos Afogados. No terceiro grupo, encontra-se o Nelson mais
popular, principalmente pelas adaptações para o cinema: A Falecida, Perdoa-me por me
Traíres, Os Sete Gatinhos, Boca de Ouro, O Beijo no Asfalto, Bonitinha,
mas Ordinária, Toda Nudez Será
Castigada e A Serpente, seu
último trabalho para teatro. Por falar nessas adaptações, salvo Toda Nudez..., dirigida por Arnaldo
Jabor, nenhuma está à altura do texto rodrigueano. Algumas, aliás, não passam
de meras pornochanchadas.
Seguindo a linha aberta por Antonin Artaud, na França,
que propôs o “teatro da crueldade”, Nelson Rodrigues também criou sua estética
da exceção: o “teatro desagradável”. Mas, ao contrário de Artaud, que
enlouqueceu antes de demonstrar na prática seus conceitos, Nelson impôs sua
obra ao público e à crítica, apesar de todos os percalços, todos muito
previsíveis. Em um depoimento à revista Dyonisos,
ele escreveu: “com Vestido de Noiva,
conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o para sempre (...) A partir
de Álbum de Família enveredei por um
caminho que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito”. E esse caminho
era, nas próprias palavras do autor, “o teatro desagradável, formado por peças
desagradáveis − obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o
tifo e a malária na platéia”. Se a tragédia clássica, mesmo sem final feliz,
pune o mal, Nelson ousa fazer, sempre, com que o mal triunfe. Nesse sentido, Álbum de Família, onde os arquétipos mais
insondáveis da alma humana são levados à cena, é a maior expressão do
desagradável.
E de que forma Nelson Rodrigues manipulava a platéia?
Desprezando-a, simplesmente, como Camus, para quem “um homem só é
verdadeiramente livre quando aprende a desprezar a humanidade”. Sobre a
repugnância que a plateia lhe causava, de certa feita ele escreveu: “a rigor,
não existe o autor dramático absoluto, já que todos aceitam a co-autoria das
duzentas senhoras gordas da platéia. O espetáculo é feito para elas, à sua imagem
e semelhança”. Ele, com certeza, rejeitava essa co-autoria, bem como a dos
críticos, que ele caricatura, impiedosamente, em Viúva, Porém Honesta. Para Nelson, a plateia é partícipe do
espetáculo, como um coro grego: ela reage e interage com o espetáculo. Logo, a
vaia era um termômetro da inovação, do choque. E ele a buscava, obsessivamente.
Consciente do que fazia, Nelson Rodrigues, um
reacionário assumido, agia como um anarquista que quisera destruir todos os
laços sociais por sabê-los apodrecidos. E a família, sempre a personagem de
maior destaque e sempre no papel de vilã, pode ser vista aqui como uma metáfora
do Estado corrompido. Em Viúva, Porém
Honesta, a personagem Diabo da Fonseca, o próprio, faz-se porta-voz de um
verdadeiro manifesto contra os valores mais caros do conservadorismo: “(...) é
falsa a família, falsa a psicanálise, falso o jornalismo, falso o patriotismo,
falsos os pudores, tudo falso!”. O niilismo como postura filosófica, as
atitudes públicas desafiadoras e polêmicas, o pessimismo entranhado nas
personagens e nas situações que se repetem a cada trabalho, emprestam à obra de
Nelson Rodrigues uma unidade inquestionável, mostrando o quanto ela foi
planejada, trabalhada e construída, minimamente. Anti-Nelson Rodrigues é a exceção óbvia − de um óbvio, aliás, tão
ululante que se exprime no próprio título: um gutural sorriso de escárnio
contra quem esperava mais uma ousadia de quem já tudo ousara.
Obs: texto escrito e publicado no Amazonas em tempo há uns 15 anos.
(*) O que eu queria dizer era que o dramaturgo é genial. E ponto.
Agora dizer que o cronista é descartável, francamente, seu Zemaria Pinto!...