João
Bosco Botelho
Alguns
registros sugerem, fortemente, que os métodos abortivos utilizados como contraceptivos
foram usuais nas primeiras cidades do segundo milênio a.C. Essa herança social chegou
ao mundo greco‑romano. Esses registros também evidenciam que pouco importava à
mulher daquela época o momento da gravidez mais propício para provocar o
aborto.
As
regras sociais do politeísmo, do segundo milênio, não empunhavam restrições, ao
menos nos dois mais antigos textos legisladores, o Código de Hammurabi, do
século 17 a.C., e as leis de Eshnunna (1825‑1787 a.C.) não fazem referência ao
assunto.
Em
contrapartida, o juramento de Hipócrates, do século 4 a.C., produzido na Escola
de Medicina, na ilha de Cós, mostra a clara tendência antiabortiva dos médicos
gregos sob a liderança de Hipócrates: “... Não darei venenos mortais a ninguém,
mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, igualmente, não
darei às mulheres pessário para provocar aborto.” É difícil assegurar se
tratar da exclusiva crítica à eutanásia ou, por outro lado, dos cuidados para
evitar medicamentos utilizados na época, que poderiam causar a morte, como o
heléboro (erva medicinal do gênero Veratrum, da família das liláceas, que contém o alcalóide veratina, com propriedades analgésicas).
Igualmente, a proibição do aborto é um dos aspectos mais curiosos do Juramento
hipocrático. Nenhum médico hipocrático o condenou, salvo pelas complicações que
podiam ocorrer, em especial, a morte da gestante. Entretanto, existe documentação
que sugere ser o aborto religiosamente impuro.
Em
torno do século 4 d.C., a profissão médica foi severamente fiscalizada e instituído
rigoroso exame para todos que quisessem exercer a profissão. O império romano
subvencionava os estudantes de Medicina, mas em troca erram obrigados a prestar
assistência aos pobres. Os médicos foram proibidos de praticar o aborto e negar
o atendimento a qualquer doente, sob o risco de castigo corporal e multa.
Por
outro lado, houve certa indulgência em Aristóteles (Política, VII, 4), que aconselhava a interrupção da gravidez frente
às necessidades médicas, desde que o embrião não tivesse recebido o sentimento
e a vida. No texto aristotélico, existe a limitação do aborto como método
anticoncepcional, de acordo com a idade fetal.
Depois
de quase dois mil anos de limitações impostas, ora pelo sagrado, ora pelo
profano, nas relações sociais, a estimativa do número de abortos provocados por
ano no mundo ultrapassou, em 1989, 40 milhões. Dez por cento desse total, 4
milhões, foram feitos no Brasil, causando a morte de trezentas mil mulheres.
A
Organização Mundial de Saúde publicou que o Brasil já tem maior número de
abortos do que de nascimentos. Os estudos da OMS e de outras entidades de direitos
humanos, mostram que a mortalidade e a morbidade são atenuadas com a melhor assistência
do Estado. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos da América, a partir de 1973,
quando a Suprema Corte legalizou o aborto, com severas restrições à realização
em hospitais públicos, em menores de idade e em gestantes com mais de dois meses
de gravidez.
A
tendência pró‑aborto iniciada na Europa, nos anos setenta, é hoje mundial. Nos
últimos quinze anos, pelo menos vinte países modificaram as suas leis. Na
Itália, o mais católico dos países da Europa, a legalização do aborto provocou
muito conflito. Só depois de cinco anos de debates no Parlamento, em 1975, e
com a ajuda da frente laica, reunindo
os representantes de todos os partidos políticos, foi aprovada a mudança. O
plebiscito, realizado no papado de João Paulo II, mostrou que 70 % dos
italianos aprovaram a lei.
As
estatísticas mundiais, notadamente, nos países de tradição cristã, evidenciam o
aumento do número dos abortos provocados. Mesmo com essa clareza, continua em
plena efervescência essa discussão, na medida em que todos concordam ser necessário
monitorar a decisão da busca do aborto como medida anticoncepcional, notadamente
se a mulher que pretende abortar é menor de idade.
Na
França, a permissão legal para o aborto alcança os embriões de 14 semanas.
Contudo, a entrevista obrigatória com equipe especializada, que antecede o ato
médico, nos hospitais públicos, e o apoio governamental no sustento futuro da
criança, consegue reverter a decisão em mais da metade dos casos
As
análises dos dados estatísticos forçam pelo menos duas reflexões:
–
As proibições profanas e sagradas não modificaram, em quase dois mil anos, o
comportamento das mulheres quando decididas a utilizar o aborto como método anticoncepcional;
–
Nas sociedades com problemas de superpopulação, pode ocorrer o estímulo público
e institucional ao aborto como forma de controle populacional.