João
Bosco Botelho
É
difícil entender as razões pelas quais tanto o Antigo quanto o Novo Testamento,
mesmo contendo inúmeras referências específicas sobre a organização familiar, não
citam uma só vez a prática abortiva. É como se o fato, que incontestavelmente deveria
ocorrer, não tivesse qualquer importância social e religiosa. A Bíblia não
condena nem aprova a interrupção da gravidez como forma anticoncepcional.
A mais antiga e clara referência
cristã antiabortiva está no Didaqué, manual
ético‑moral, escrito nos anos 100 da nossa Era: “Não matarás criança por aborto,
nem criança já nascida”. O filósofo cristão Tertuliano (190‑197) também adotou
a posição antiabortiva absoluta: “É homicídio antecipar ou impedir alguém de
nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça
desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá”.
São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes
doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algásia, argumentou: “... os
sêmens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes
que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros”. Contudo, em
outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a
infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de triplo crime: adultério, suicídio,
assassinato dos filhos.
De forma semelhante, Santo Agostinho
(354‑430) manteve a separação etária dos fetos: “Pois uma vez que o grande
problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e
não fundamentados, a LEI não prevê que o ato seja considerado como homicídio, uma
vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa
carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos”.
Na Idade Média, a Igreja
cristianizou algumas comemorações oriundas do politeísmo. A da Natividade do
Senhor foi uma das primeiras, fixada no fim do século 4, iniciando os atributos
sagrados às concepções, seguida da Natividade da Imaculada Conceição de Maria, celebrada
no dia 8 de dezembro, e da Anunciação, ou festa
da concepção de Cristo, respectivamente nos séculos 6 e 7. Essas celebrações
contribuíram para impor simbologia sagrada à gestação.
A dúvida sobre a data do início da
animação do feto, oriunda dos conceitos aristotélicos, atravessou dois
milênios de reconstruções sociopolíticas. O magnífico Santo Tomás (1225‑1274) sustentou
que não ocorria na concepção e que só o aborto de um feto animado era homicídio.
A força da tradição e a moralidade do tomismo para a estrutura dogmática da
Igreja influenciaram decisivamente no afrouxamento da proibição. O papa
Gregório XIV, apoiado no argumento de muitos teólogos, revogou a Bula de Xisto
V (1588), que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto em qualquer
fase do feto.
O retorno da Igreja, verificado no século 19, ao
rigor do cristianismo do Didaqué tem
dois componentes inseparáveis: um teológico e outro político. O primeiro, promovido
pelo papa Pio XI, acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado.
O segundo, relacionado com a industrialização crescente do ocidente e a imperativa
necessidade de mão‑de‑obra, já que historicamente o aborto e suas conseqüências
maléficas alcançam mais as mulheres oriundas dos estratos sociais mais pobres. No
famoso discurso, dirigido às obstetras, em 1951, foi enfático ao atribuir vida
intra-uterina plena antes do nascimento e condenar o aborto enquanto morte do
inocente: “...Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe
o direito à vida diretamente de Deus... Não há nenhum homem, nenhuma autoridade
humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, econômica, social, moral, que
possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberadamente de uma
vida humana inocente... visando sua destruição”.
O
documento conciliar Gaudium et Spes, considerado
progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição
incondicional: “A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de
cuidado e o aborto como o infanticídio são delitos abomináveis”. Parte dessa
construção da Igreja, que se mantém coerentemente contra a prática abortiva
como método anticoncepcional, parece ter sido edificada também em passagens do
AT (Gn 1, 14; 9, 5‑6 e Ex 20, 13) e do NT (Mc 12, 27; Lc 1, 41‑44 e Mt 1, 18), todas
valorizando a vida humana e situando Deus como o único Senhor da vida e da
morte.