Amigos do Fingidor

quinta-feira, 16 de maio de 2013

O aborto e o sagrado


 
João Bosco Botelho

 

É difícil entender as razões pelas quais tanto o Antigo quanto o Novo Testamento, mesmo contendo inúmeras referências específicas sobre a organização familiar, não citam uma só vez a prática abortiva. É como se o fato, que incontestavelmente deveria ocorrer, não tivesse qualquer importância social e religiosa. A Bíblia não condena nem aprova a interrupção da gravidez como forma anticoncepcional.

            A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100 da nossa Era: “Não matarás criança por aborto, nem criança já nascida”. O filósofo cristão Tertuliano (190‑197) também adotou a posição antiabortiva absoluta: “É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá”.

             São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algásia, argumentou: “... os sêmens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros”. Contudo, em outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de triplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos filhos.

            De forma semelhante, Santo Agostinho (354‑430) manteve a separação etária dos fetos: “Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, a LEI não prevê que o ato seja considerado como homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos”.

            Na Idade Média, a Igreja cristianizou algumas comemorações oriundas do politeísmo. A da Natividade do Senhor foi uma das primeiras, fixada no fim do século 4, iniciando os atributos sagrados às concepções, seguida da Natividade da Imaculada Conceição de Maria, celebrada no dia 8 de dezembro, e da Anunciação, ou festa da concepção de Cristo, respectivamente nos séculos 6 e 7. Essas celebrações contribuíram para impor simbologia sagrada à gestação.

            A dúvida sobre a data do início da anima­ção do feto, oriunda dos conceitos aristotélicos, atravessou dois milênios de reconstruções sociopolíticas. O magnífico Santo Tomás (1225‑1274) sustentou que não ocorria na concepção e que só o aborto de um feto animado era homicídio. A força da tradição e a moralidade do tomismo para a estrutura dogmática da Igreja influenciaram decisivamente no afrouxamento da proibição. O papa Gregório XIV, apoiado no argumento de muitos teólogos, revogou a Bula de Xisto V (1588), que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto em qualquer fase do feto.

             O retorno da Igreja, verificado no século 19, ao rigor do cristianismo do Didaqué tem dois componentes inseparáveis: um teológico e outro político. O primeiro, promovido pelo papa Pio XI, acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado. O segundo, relacionado com a industrialização crescente do ocidente e a imperativa necessidade de mão‑de‑obra, já que historicamente o aborto e suas conseqüências maléficas alcançam mais as mulheres oriundas dos estratos sociais mais pobres. No famoso discurso, dirigido às obstetras, em 1951, foi enfático ao atribuir vida intra-uterina plena antes do nascimento e condenar o aborto enquanto morte do inocente: “...Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de Deus... Não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, econômica, social, moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberadamente de uma vida humana inocente... visando sua destruição”.
 
            O documento conciliar Gaudium et Spes, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: “A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado e o aborto como o infanticídio são delitos abomináveis”. Parte dessa construção da Igreja, que se mantém coerentemente contra a prática abortiva como método anticoncepcional, parece ter sido edificada também em passagens do AT (Gn 1, 14; 9, 5‑6 e Ex 20, 13) e do NT (Mc 12, 27; Lc 1, 41‑44 e Mt 1, 18), todas valorizando a vida humana e situando Deus como o único Senhor da vida e da morte.