Amigos do Fingidor

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Paraíso, caridade e hospitais na Europa medieval 2/2


 
João Bosco Botelho


Santas Casas
 

De modo geral, quanto maior a miséria coletiva, maior é o chamamento à caridade. Nesse sentido, Portugal foi particularmente castigado pela peste negra, pelo menos com duas dezenas de surtos, registrados entre 1188 e 1496.

As epidemias do século XIV, agravadas pelas guerras intestinas da nação portuguesa, mostraram-se tão desesperantes que o enterro dos mortos tornou-se impossível. Os cadáveres acumulavam-se por toda parte, oferecendo aos que sobreviviam a idéia da chegada do fim dos tempos e o cumprimento das previsões apocalípticas.

Impedidos ao acesso de Jerusalém, conquistada pelos muçulmanos, os que resistiram à morte, pela doença ou fome, marcharam em grandes procissões na direção de Compostela, na busca do milagre, no santuário de São Jaime. Muitos peregrinos morriam no caminho ou não conseguiam continuar, impedidos pela fragilidade física. Com o dinheiro da caridade, muitas hospedarias-hospitais foram construídas nos caminhos que levaram a Compostela e utilizadas pelos devotos, seja para recuperar as forças e seguir a procissão ou morrer.

Em Portugal, junto à caridade também permearam outros interesses. Não se deve estranhar que, em muitos casos, estivessem ligados às vantagens financeiras. O argumento ganha suporte no fato de que D. Pedro, em 1420, escreveu ao irmão D. Duarte, sugerindo a intervenção real na administração das hospedarias-hospitais, como alternativa para reabilitar a debilitada economia do reino.

 A Igreja e Portugal passaram a disputar acidamente esse filão inesgotável de recursos que a caridade representava. As ordens religiosas devem ter sido mais ágeis, ao ponto de a situação ter ficado insustentável, causando prejuízo à arrecadação real. A reação foi imediata. Por ordem de D. Duarte, publicada nas Ordenações Alfonsinas, de 1446, ocorreu a intervenção nas albergarias-hospitais, instruindo que todos os legados doados às irmandades deveriam ser encaminhados aos tribunais laicos e não mais aos religiosos.

A dissolução compulsória das albergarias-hospitais foi seguida de medidas tomadas por D. João II, para organizar um hospital único, sob o controle da administração real. Somente em 1479, por meio da Bula de Xisto IV (1471-1484), o rei de Portugal recebeu autorização para construir um hospital único nas principais cidades e sob administração laica.
 
           Contrariando a expectativa, a unificação das incontáveis instituições de caridade voltadas à assistência médica, idealizada para fugir do controle de Roma, não deu certo. Pouco mais de dez anos depois, a Igreja suplantou o Reino português adaptando o antigo projeto centralizador para criar as Santas Casas, sob a administração dos Hospitalários de São João, dos Antoninos e do Espírito Santo, que se firmaram da Ásia às Américas, inclusive chegando a Manaus, no século XIX, que continuaram receberam doações ainda mais abundantes dos ricos desejosos do paraíso.