João
Bosco Botelho
Santas Casas
De
modo geral, quanto maior a miséria coletiva, maior é o chamamento à caridade. Nesse
sentido, Portugal foi particularmente castigado pela peste negra, pelo menos
com duas dezenas de surtos, registrados entre 1188 e 1496.
As
epidemias do século XIV, agravadas pelas guerras intestinas da nação portuguesa,
mostraram-se tão desesperantes que o enterro dos mortos tornou-se impossível. Os
cadáveres acumulavam-se por toda parte, oferecendo aos que sobreviviam a idéia
da chegada do fim dos tempos e o cumprimento das previsões apocalípticas.
Impedidos
ao acesso de Jerusalém, conquistada pelos muçulmanos, os que resistiram à
morte, pela doença ou fome, marcharam em grandes procissões na direção de
Compostela, na busca do milagre, no santuário de São Jaime. Muitos peregrinos
morriam no caminho ou não conseguiam continuar, impedidos pela fragilidade
física. Com o dinheiro da caridade, muitas hospedarias-hospitais foram construídas
nos caminhos que levaram a Compostela e utilizadas pelos devotos, seja para
recuperar as forças e seguir a procissão ou morrer.
Em
Portugal, junto à caridade também permearam outros interesses. Não se deve
estranhar que, em muitos casos, estivessem ligados às vantagens financeiras. O argumento
ganha suporte no fato de que D. Pedro, em 1420, escreveu ao irmão D. Duarte,
sugerindo a intervenção real na administração das hospedarias-hospitais, como
alternativa para reabilitar a debilitada economia do reino.
A Igreja e Portugal passaram a disputar
acidamente esse filão inesgotável de recursos que a caridade representava. As
ordens religiosas devem ter sido mais ágeis, ao ponto de a situação ter ficado
insustentável, causando prejuízo à arrecadação real. A reação foi imediata. Por
ordem de D. Duarte, publicada nas Ordenações Alfonsinas, de 1446, ocorreu a
intervenção nas albergarias-hospitais, instruindo que todos os legados doados
às irmandades deveriam ser encaminhados aos tribunais laicos e não mais aos religiosos.
A
dissolução compulsória das albergarias-hospitais foi seguida de medidas tomadas
por D. João II, para organizar um hospital único, sob o controle da administração
real. Somente em 1479, por meio da Bula de Xisto IV (1471-1484), o rei de
Portugal recebeu autorização para construir um hospital único nas principais
cidades e sob administração laica.