Inácio
Oliveira
V
Segui minha vida sem Lola. Tanto que
imaginei uma vida com ela que tudo ficou na imaginação. Há certas coisas que
pertencem apenas ao reino das coisas intangíveis e por força jamais acontecerão,
mas de muito imaginá-las é como se houvessem acontecido. A minha tristeza é por
tudo aquilo que eu não vivi com Lola. Os momentos que estive com ela se
evaporam e se condensam de tanto eu pensar neles, vão crescendo no meu pensamento,
se transformam em outra coisa. Vivi assim até o dia em que encontrei Lola
novamente, ou melhor, ela me encontrou. Dessa vez não foi por acaso, Lola bateu
na minha porta às três da manhã e disse “eu vim pra ficar com você, posso
entrar?” Julguei estar sonhando, por isso não procurei entender o que acontecia.
Peguei Lola no colo, levei-a até cama e fiz amor com ela. Tirei sua roupa com
muito cuidado temendo acordar a qualquer momento, mas eu já não estava dormindo
e aquilo não era um sonho: era um milagre. A cidade estava em silêncio, a luz
da rua iluminava seu rosto e ela parecia sorrir, naquele momento eu a amei como
se eu fosse todos os homens.
O pai de Lola havia morrido um ano
antes. Ela ficava triste às vezes, mas já não havia a inquietação de sempre em
seus olhos. Foi o tempo mais longo que passei com Lola. Eu nunca fora tão feliz
em toda a minha vida, no entanto tinha medo de acordar no meio da noite e Lola
ter sumido, evaporado, como costumava fazer. Mas foi numa tarde tranquila num
barzinho do subúrbio que Lola pôs a mão na minha sobre a mesa e me olhou em
silêncio. Com o tempo havíamos adquirido uma linguagem secreta que prescindia
das palavras e a maneira como Lola pôs a mão sobre a minha e sua forma de me olhar
diziam que ia acontecer o que sempre acontecia, uma coisa com a qual eu já
devia estar acostumado, porém eu jamais me acostumaria ao fato de Lola sempre
me abandonar. O bar ficava no alto do morro, dava para ver a cidade lá de cima.
Escurecia e as casas das pessoas foram se tornando milhares de pontos
luminosos, era bonito, mas eu estava triste e odiava aquela cidade, odiava
aquela gente, odiava Lola. Ela viu passar uma nuvem em meu rosto, não sei o que
sentiu ao me ver tão destroçado. Rabiscou num guardanapo de papel uns versos
que eu li. Nega-me o pão, o ar, a luz, a
primavera, mas nunca o teu riso; porque então morreria. Então eu apenas
sorri, porque Neruda era meu poeta preferido e Lola ter escrito assim aqueles
versos num guardanapo de papel era covardia. Tocava uma música num tom muito
baixo que era quase um silêncio e de repente todas as coisas ganharam um
caráter de despedida como se tudo ao redor estivesse em vias de extinguir-se:
Lola e os copos sobre a mesa, a própria mesa, o bar, aquela cidade e o mundo
inteiro, e apenas eu restasse sozinho no vazio. Voltei para casa sem Lola. Na
saída do bar a rua estava deserta, Lola chamou um táxi, entrou e o carro partiu
devagar pela rua cheia de buracos, dobrou a esquina e sumiu, eu fiquei sozinho na
rua vendo-a partir. Era a primeira vez que eu testemunhava o momento exato em
que Lola desaparecia. Um homem sozinho numa rua escura vendo a mulher que ama
partir, essa era a metáfora perfeita da minha vida. Cheguei em casa depois de
muito tempo vagando pelas ruas, abri a porta e a luz iluminou a sala, a cozinha
e o quarto vazio. Naquele momento eu senti aquilo que um órfão sente e não sabe
dizer.
(continua
na próxima segunda-feira)