Zemaria Pinto*
A ficção sempre andou à
frente da história. Testemunha viva do seu tempo, a ficção é um inventário de atos
e fatos que a história, sempre escrita depois, esqueceria, se não se valesse do
registro ficcional. Por outro lado, a crônica é um gênero essencialmente
marginal: misto de ficção e história, não tem com esta o compromisso da
verdade, nem com aquela as sutilezas da linguagem. Mas é preciso que haja
verossimilhança – isto é: pode até não ter acontecido assim ou assado, mas, do
jeito como é contado, até que poderia ser verdadeiro...
E o que uma outra tem a
ver com a coisa? Elementar, meu caro Sancho: o leitor tem nas mãos um livro de
crônicas – que registram acontecimentos com personagens reais, muitos ainda
vivos (aliás, muito vivos!), passados num tempo recente –, mas que pode ser
lido como pura ficção, salientando-se o estilo soberbo do autor, sem nenhum
exagero, radicalizando entre a rudeza de um Plínio Marcos e a alegre amargura
de um Nelson Rodrigues – que, antes de serem grandes dramaturgos, eram putas
cronistas. Numa palavra: ironia, escárnio, deboche – escolha. Mas não é só isso:
Sanatório Geral é um belo livro de
história, embora alguns historiadores barés torçam seu nariz de cera a ele e
prefiram ignorar os “causos” que humanizariam as personagens que eles insistem
em endeusar.
Projetado para ser
lançado em seis volumes, Folclore
Político foi apenas até o terceiro, paralisado pelo olho gordo e pelos
despachos (em todos os sentidos) dos desafetos, “ofendidos” com as historinhas
capazes de deixar nu em pelo qualquer candidato a rei. E como tem rei nu nesta
imensidão amazônica! Daí que Simão Pessoa, por dúvida das vias, depois de
muitos processos e ameaças de morte, foi procurar inspiração em reis de outras
freguesias, o que só aumentou a abrangência deste Sanatório, que deixa de ser meramente paroquial para ser supranacional.
Mesclando casos
clássicos da história política brasileira com inimagináveis, sórdidas,
engraçadíssimas e tristes picuinhas regionais, que cairiam no esquecimento se
não fosse pela verve de Simão, Sanatório
Geral é um autêntico tratado sobre essa arte tão abandalhada da política.
Anarquista, Simão não livra a cara da direita nem da esquerda, muito menos dos
muristas (não confundir com muralistas) – onde se classifica a supremacia dos
políticos do Amazonas, mais preocupados em inflar suas gordas contas bancárias e
massagear seus egos de baiacu que em melhorar minimamente as condições de vida
do povo.
E para quem ainda não
entendeu o título, esclareça-se: “dormia a nossa pátria-mãe tão distraída / sem
perceber que era subtraída / em tenebrosas transações... / palmas pra ala dos
barões famintos / o bloco dos napoleões retintos / e os pigmeus do boulevard...
/ o estandarte do Sanatório Geral vai passar!” Trata-se de um falso
samba-enredo do inexorável e inoxidável Chico Buarque; mas essa metáfora do
sanatório me parece que é bem mais antiga: Machado de Assis? Lima Barreto?
Oswald de Andrade? Seja de quem for, agora é do Simão, porque concretiza o
intertexto perfeito entre continente e conteúdo: a política brasileira é mesmo
isso – um imenso hospício, onde os loucos mais safados se fazem de doidos incuráveis
para ser tomados pelos mais doidões como menos loucos, capazes, portanto, de
guiá-los no escuro labirinto de sua crônica insanidade. Entendeu?
(*) Zemaria Pinto, escritor e
blogueiro, é doido manso.
Obs: desapresentação do livro Sanatório Geral, de Simão Pessoa, lançado por estes dias.
Capa de Sanatório Geral (histórias políticas do arco da velha). À venda no Alienista (Praça da Polícia, em frente ao Palacete provincial) e no Sebão da Praça do Congresso (no lado oposto ao tacacá). |