Amigos do Fingidor

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Aparições de Lola – 5/5



Inácio Oliveira

VII

         Hoje estou casado e tenho uma filha com essa mulher. Rute é uma boa esposa e Clarice é uma criança incrível. Abandonei a escrita e me dediquei à pintura, tenho uma exposição permanente na capital e meus quadros já foram expostos em vários lugares ao redor do mundo, há sempre encomendas para compor galerias e museus no exterior. Os críticos apontam a mulher recorrente na minha obra como a imagem idealizada da mãe, eu acho engraçado. Temos um sítio onde vamos passar os fins de semanas. Há o canto dos pássaros, o cheiro do mato e o rumor dos ventos, e há também um lago onde se pode pescar; na frente da casa há uma pequena piscina que se deixarmos Clarice passa a vida toda lá dentro; um pouco acima há um jardim que Rute trata com dedicação; na varanda existe uma rede onde nos deitamos e pensamos que somos felizes. Mas sempre há uma hora do entardecer em que eu fico pensando em como que homem que foi agraciado com tudo que o mundo pode oferecer de melhor mesmo assim ainda sente que lhe falta algo.

         Nesses anos todos Lola tem sido apenas uma lembrança distante, quase um afago na memória. Penso nela como se a visse de relance. Há um frágil equilibro que se formou entre Rute, Clarice e eu, e é neste circulo que eu me sinto seguro, mas nunca posso estar distraído que alguma coisa acontece. Estávamos à mesa e Rute disse algo assim “você viu que exumaram o corpo do poeta Pablo Neruda?” Quando Rute disse isso eu fui traspassado por uma lembrança assim como um vitral é traspassado por uma luz. Eu não disse nada, apenas pousei a xícara na mesa e fiquei olhando os desenhos na toalha, meu olhar vagueou pela cozinha como se eu estivesse num lugar estranho e Rute fosse uma mulher desconhecida e aquela casa, aquela vida não fosse a minha. Vi Lola tomar forma na minha frente e escrever novamente num guardanapo de papel aqueles versos Nega-me o pão, o ar, a luz, a primavera, mas nunca o teu riso; porque então morreria. Aquele equilíbrio que há muito eu mantinha de repente se rompeu. Por um momento, Rute fingiu não notar a minha distração, mas por fim perguntou “em que você esta pensando?” “Em nada”, respondi. “Impossível, ninguém fica assim olhando para o vazio sem pensar em nada”. “Pois eu fico, desde criança posso ficar horas e horas sem pensar absolutamente nada, eu e os monges tibetanos”. Ela riu, sabia que estava mentindo, só não sabia que eu estava pensando em Lola.

VIII

         Naqueles dias eu recebi uma mensagem de Lola. Estou hospedada no hotel Brasil. Preciso muito ver você. Reli aquelas palavras observando cada letra como se cada uma guardasse um conteúdo cifrado, como se aquelas palavras dissessem muito mais do que estava escrito. Encontrei Lola sozinha numa das mesas do restaurante do hotel, senti uma leve satisfação em ver aquela mulher que me abandonara, ali tão indefesa, tão vulnerável. Fiz questão de sorrir para mostrar que estava bem e feliz. Lola parecia ter envelhecido muito, seu rosto havia adquirido a expressão dos que muito sofreram. Seu olhar, que parecia já ter visto tanta coisa, me atravessou como se eu fosse de vidro. “Eu vim de muito longe para ver você, não está feliz em me ver?”. “Não posso mais ver você”. “Aconteceram tantas coisas, preciso muito da sua ajuda”. “Não me procure mais, Lola. Agora eu tenho uma esposa, uma filha, uma família”. “Eu só tenho você”. Um minuto a mais ali naquela mesa e eu seria tragado pela força que Lola exercia sobre mim, então me levantei e fui embora. Depois eu fiquei pensando num universo alternativo, onde a gente diz sim ao invés de não, no mundo de possibilidades de uma vida com Lola, mas é sempre um mundo que não se completa, que não se sustenta como verdade. Eu nunca saberia quem era realmente aquela mulher.

IX

         Hoje recebi uma pequena embalagem, o mensageiro do hotel a trouxe até a minha casa. Soube que a mulher que pediu que esta embalagem fosse entregue no meu endereço amanheceu morta no seu quarto. Suspeitam de assassinato, suicídio, overdose, mas ninguém sabe direito o que aconteceu. Ao abrir a embalagem vi o broche, estava perfeito como no dia em que eu o roubei da caixa de joias da minha mãe, junto do broche estava um papel com os versos do Neruda, Nega-me o pão, o ar, a luz, a primavera, mas nunca o teu riso; porque então morreria. Escondi esse broche como muito cuidado para que ninguém nunca o encontrasse, mas agora mesmo Clarice aparece com ele preso aos cabelos aqui na sala. Senta-se no meu colo para brincar com os botões da minha camisa, como costuma fazer. Eu faço um carinho no seu rosto afastando seus cabelos para trás da orelha, mas alguma coisa desfaz o meu gesto, pois há nele a forma como eu acariciava o rosto de Lola há tanto tempo.