Inácio
Oliveira
VII
Hoje estou casado e tenho uma filha com
essa mulher. Rute é uma boa esposa e Clarice é uma criança incrível. Abandonei
a escrita e me dediquei à pintura, tenho uma exposição permanente na capital e
meus quadros já foram expostos em vários lugares ao redor do mundo, há sempre
encomendas para compor galerias e museus no exterior. Os críticos apontam a
mulher recorrente na minha obra como a imagem idealizada da mãe, eu acho
engraçado. Temos um sítio onde vamos passar os fins de semanas. Há o canto dos
pássaros, o cheiro do mato e o rumor dos ventos, e há também um lago onde se
pode pescar; na frente da casa há uma pequena piscina que se deixarmos Clarice
passa a vida toda lá dentro; um pouco acima há um jardim que Rute trata com
dedicação; na varanda existe uma rede onde nos deitamos e pensamos que somos
felizes. Mas sempre há uma hora do entardecer em que eu fico pensando em como
que homem que foi agraciado com tudo que o mundo pode oferecer de melhor mesmo
assim ainda sente que lhe falta algo.
Nesses anos todos Lola tem sido apenas
uma lembrança distante, quase um afago na memória. Penso nela como se a visse
de relance. Há um frágil equilibro que se formou entre Rute, Clarice e eu, e é
neste circulo que eu me sinto seguro, mas nunca posso estar distraído que alguma
coisa acontece. Estávamos à mesa e Rute disse algo assim “você viu que exumaram
o corpo do poeta Pablo Neruda?” Quando Rute disse isso eu fui traspassado por
uma lembrança assim como um vitral é traspassado por uma luz. Eu não disse nada,
apenas pousei a xícara na mesa e fiquei olhando os desenhos na toalha, meu
olhar vagueou pela cozinha como se eu estivesse num lugar estranho e Rute fosse
uma mulher desconhecida e aquela casa, aquela vida não fosse a minha. Vi Lola
tomar forma na minha frente e escrever novamente num guardanapo de papel
aqueles versos Nega-me o pão, o ar, a
luz, a primavera, mas nunca o teu riso; porque então morreria. Aquele
equilíbrio que há muito eu mantinha de repente se rompeu. Por um momento, Rute
fingiu não notar a minha distração, mas por fim perguntou “em que você esta
pensando?” “Em nada”, respondi. “Impossível, ninguém fica assim olhando para o vazio
sem pensar em nada”. “Pois eu fico, desde criança posso ficar horas e horas sem
pensar absolutamente nada, eu e os monges tibetanos”. Ela riu, sabia que estava
mentindo, só não sabia que eu estava pensando em Lola.
VIII
Naqueles dias eu recebi uma mensagem de
Lola. Estou hospedada no hotel Brasil. Preciso
muito ver você. Reli aquelas palavras observando cada letra como se cada
uma guardasse um conteúdo cifrado, como se aquelas palavras dissessem muito
mais do que estava escrito. Encontrei Lola sozinha numa das mesas do
restaurante do hotel, senti uma leve satisfação em ver aquela mulher que me
abandonara, ali tão indefesa, tão vulnerável. Fiz questão de sorrir para
mostrar que estava bem e feliz. Lola parecia ter envelhecido muito, seu rosto
havia adquirido a expressão dos que muito sofreram. Seu olhar, que parecia já
ter visto tanta coisa, me atravessou como se eu fosse de vidro. “Eu vim de
muito longe para ver você, não está feliz em me ver?”. “Não posso mais ver
você”. “Aconteceram tantas coisas, preciso muito da sua ajuda”. “Não me procure
mais, Lola. Agora eu tenho uma esposa, uma filha, uma família”. “Eu só tenho
você”. Um minuto a mais ali naquela mesa e eu seria tragado pela força que Lola
exercia sobre mim, então me levantei e fui embora. Depois eu fiquei pensando
num universo alternativo, onde a gente diz sim ao invés de não, no mundo de
possibilidades de uma vida com Lola, mas é sempre um mundo que não se completa,
que não se sustenta como verdade. Eu nunca saberia quem era realmente aquela
mulher.
IX
Hoje recebi uma pequena embalagem, o
mensageiro do hotel a trouxe até a minha casa. Soube que a mulher que pediu que
esta embalagem fosse entregue no meu endereço amanheceu morta no seu quarto.
Suspeitam de assassinato, suicídio, overdose, mas ninguém sabe direito o que
aconteceu. Ao abrir a embalagem vi o broche, estava perfeito como no dia em que
eu o roubei da caixa de joias da minha mãe, junto do broche estava um papel com
os versos do Neruda, Nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera, mas nunca o teu riso; porque então morreria. Escondi
esse broche como muito cuidado para que ninguém nunca o encontrasse, mas agora
mesmo Clarice aparece com ele preso aos cabelos aqui na sala. Senta-se no meu
colo para brincar com os botões da minha camisa, como costuma fazer. Eu faço um
carinho no seu rosto afastando seus cabelos para trás da orelha, mas alguma
coisa desfaz o meu gesto, pois há nele a forma como eu acariciava o rosto de
Lola há tanto tempo.