Amigos do Fingidor

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Dom de curar


 

João Bosco Botelho

 

             A sedução exercida pelos taumaturgos e adivinhos, hábeis articuladores na dualidade sagrada e profana, marcou as mentalidades. Esses homens e mulheres, reconhecidos como portadores de dotes especiais super-humanos, como no passado remoto, aqui e acolá, continuam curando e adivinhando. 

            O dom ou o carisma, como dádiva divina, está ajustado para unir a posse da terra à guarda do corpo. Na realidade, representa a analogia do mecanismo binário de prêmio-castigo, nos espaços sagrado e profano.  A ordem sublime emprega-o, para abrigar a imagem do corpo (espírito, alma etc.) no espaço transcendente (céu, éden, paraíso etc.).  A secular, para garantir o corpo submisso  no  território (casa, bairro, cidade, município, país e a área por onde se dá  o fluxo de mercadorias no mercado interno e externo). 

            Aquele que tem o dom de curar  pessoas ou  sociedades  (líder,  messias, benzedor, pajé, padre, médico etc.) deve ser obedecido e reverenciado (Eclo 38, 1-2). 

             A cultura judaica admite o sinal da deidade – o milagre.  Assumiu lugar de magna importância, porque é a prova da materialização do  dom, isto é, a fuga do conhecido, do natural, do esperado. Esse é o motivo da aclamação e do júbilo. 

             Os primeiros padres da cristandade fizeram uma fantástica reelaboração  teórica  dos sinais do AT.  Os milagres  de  Cristo, em particular  as  curas, descritos  pelos  quatro evangelistas, assumiram  grande  importância na apologética da nova religião.     

            O tomismo entendeu a importância do milagre, na fé, como fato extraordinário produzido por Deus. Os anjos bons e os santos poderiam ser agentes na promoção dos acontecimentos situados à margem das leis naturais.  Por outro lado, distinguiu o milagre do prodígio.  Este último, simples simulacro, não era fruto do poder divino.   

            A abordagem tomista foi duramente criticada por diversos filósofos.  Voltaire, no Dicionário Filosófico, tomou a argumentação dos físicos para contestar.  Afirmava ser falso pensar no milagre como  transgressão  das leis  matemáticas, criadas pela divindade, porque são coerentes e imutáveis. Espinoza também recusou a veracidade do  milagre, apoiado na premissa de que era impossível a intervenção extraordinária para mudar o curso da criação transcendente, reafirmou o engano da prática milagrosa. 

            O golpe mais forte recebido pela teorização cristã do sinal foi sustentado pelo  agnosticismo kantiano, firmado contra o determinismo absoluto. Seria incognoscível porque é muito difícil distinguir as formas variáveis e extraordinárias de agir da natureza. De acordo com Kant, não existem leis fixas e constantes, porque a estável provém, exclusivamente, do nosso aspecto subjetivo para conhecê-las.  A religião não seria nada mais que o conjunto das obrigações vistas como determinismo  para facilitar a ordem de um poder transcendente. 

            Com o intuito de reforçar o conjunto do debate, cabe lembrar a imutabilidade  das leis matemáticas, regendo a  essência  da  coisa visível, expressando o modo de ser.  Assim, em nenhuma hipótese, nem por milagre, o triângulo poderá deixar de ter os três ângulos internos.   

            No Ocidente cristão medieval, os santuários curadores e proféticos de Compostela (Espanha) e Jerusalém viveram vários séculos de  glória, recebendo peregrinos de toda a cristandade.  Nos últimos anos, o de Fátima, em Portugal, e o de Lourdes, na França, são muito procurados.   Mais recentemente, surgiu o de Medjugorje, na Iugoslávia. 

            Milhares de curas foram anunciadas pelos fiéis que procuraram o santuário de Fátima.  Como o número excedeu os limites aceitáveis, foi  criado, em 1982, uma comissão  de  médicos e religiosos, para analisar a veracidade dos sinais, vindos da divindade, ocorridos em Lourdes. Apesar do entusiasmo dos peregrinos, a Igreja Católica anunciou, em 1990, o  65º  milagre.  Trata-se de uma jovem siciliana de 25 anos, portadora de uma forma incurável de câncer ósseo no joelho.  Em 1976, depois de ela permanecer uma semana próxima ao santuário, um ano depois, houve o completo desaparecimento da lesão.   

            A  crença  nos  poderes extraordinários, oriundos da aparição  da Virgem, em  Medjugorje, pequena  cidade  no interior da Iugoslávia, começou em 1981.  Um grupo de adolescentes, quatro moças e dois rapazes, relataram ter visto uma mulher bonita que afirmavam ser a Virgem Maria. O padre Slavko Barbarich, da Igreja local, não tem dúvida da autenticidade das mensagens. 

            No Brasil, nos estratos sociais privilegiados, de   tradição cristã,  são  mais enfocadas as procuras de Lourdes, Fátima e Medjugorje. Porém, existem outros locais de súplicas, como a basílica de Aparecida, a estátua do Padre Cícero, os centros de umbanda, as igrejas protestantes e grupos kardecistas.  Todos recebem número muito maior de crentes, virtualmente agregados aos mesmos componentes de fé e religiosidade.