Amigos do Fingidor

terça-feira, 10 de junho de 2014

Da inimizade



                                                                                                                                           Tainá Vieira


Todas as manhãs, após todos saírem de casa, enquanto a empregada não chega, eu volto a dormir, mesmo depois de já ter feito a primeira refeição do dia. É quase como um rito. Pode parecer preguiçoso, mas só me sinto bem depois disso, antes, nem fale comigo, por favor.

Há umas duas semanas venho notando algo estranho que está literalmente me tirando o sono. Tenho recebido uma estranha visita na cama. Algo que eu gostaria muito que morresse, no entanto eu já tentei, já fiz de tudo e não consigo matar. A criatura é insistente demais, insistente e abusada, eu diria. Jamais imaginei que fosse ter como inimigo um dia, um minúsculo inseto chamado carapanã. Ô coisinha chata, meu Deus. 

São lá pelas 7:30 da manhã, o sol já invadiu a minha janela, isso deixa o quarto bem claro, já é possível ouvir o barulho dos trabalhadores do prédio e as vozes horríveis das vizinhas do bloco.  Como o ar-condicionado fica desligado nessa hora, é possível também sentir o cheiro de comida do almoço e os choros insuportáveis dos bebês passeando debaixo do bloco com suas babás horrendas. Não sei por qual motivo as patroas têm que escolher as babás mais feias para suas crias. Talvez elas não gostem de seus filhos e a todo tempo queiram assustá-los, por isso as babás são feias. É possível também, vez ou outra, ouvir o barulho dos caminhões de carga e descarga etc. Nessa hora o movimento já é grande. Isso lembra até O Cortiço, a diferença é que o Aluísio construiu um Cortiço para os pobres e aqui onde morro, as pessoas não são tão pobres assim; muitos são, mas de espirito. Mas o mais irritante de tudo, não é o barulho produzido por esses miseráveis seres humanos, o mais irritante de tudo, são os passarinhos que começam a gritar às 5:00 da manhã. Nossa que coisa mais deprimente é ter que ouvir a cantoria sem melodia desses feios bichinhos de pena. Parece que estou sendo cruel demais, me dirão vocês, leitores. Tudo bem, isso até que dar para aguentar, o que não dá para aguentar é a perseguição de um carapanã.

Sim, é perseguição sim. Pois, vejam bem, já são duas semanas, tenho certeza de que é o mesmo. Estou sempre do mesmo lado da cama, na mesma posição. Ele vem de mansinho e grita, berra do mesmo lado do ouvido, ele só falta entrar no ouvido e tenho certeza que se entrasse ele comeria minhas entranhas, não sei porque me odeia tanto. E o pior é sempre a mesma coisa que ele berra, não sei descrever em notas o que ele canta, pois nem consigo traduzir de tanto ódio que tenho dessa aberração. Antes eu nem ligava, cobria a cabeça com o edredom, não o ouvia, ou talvez ele que não me via mais e ia embora, e no outro dia, lá estava ele de volta.  Na segunda semana peguei ódio mortal dele, assim que ele chegava e berrava eu pegava o travesseiro e saia atrás dele, já dei várias batidas no ar, batidas em vão, não consigo matá-lo. E esse carapanã é muito atrevido, mesmo sabendo que eu posso matá-lo a qualquer momento, ele volta, volta todo cheio de si e fica tirando sarro da minha cara. Hoje a porrada que dei foi tão forte e até vibrei, tive a certeza que o tinha  matado, aí não demorou muito, quando eu já estava deitada, ele vem, como um filho sapeca que assusta sua mãe.  Hoje foi a gota d’água, cheguei até a chorar de raiva. Ultimamente, tudo parece estar contra mim, tudo anda fora do meu controle. Me sentindo desse jeito, é possível que um carapanã me vença.  Mas ele não me vencerá, eu ei de destruí-lo antes.


Parece um absurdo. Mas eu não sou uma mulher má.  Eu apenas não sou amiga de animais, aves, insetos, crianças e todo resto dos seres vivos que produzem sons que me deixam demasiadamente irritada. Eu só queria poder dormir um pouco mais, sonhar um pouco mais. Pois só me sinto bem, quando estou deitada e sonhando, minha alma sai de meu corpo e me leva para os lugares que gostaria de estar realmente e só posso fazer isso dormindo e quando estou só. Aí vem esse maldito carapanã e atrapalha tudo.  Ele tornou-se o meu carma, meu inimigo principal. Preciso destruí-lo, antes que ele destrua os meus sonhos. Conto com a colaboração do destino, amanhã não sei se esse carapanã vai voltar ou sou eu que permanecerei para sempre no lugar do meu último sonho a que minha alma me levará.