João Bosco Botelho
Um
dos aspectos mais intrigantes e fascinantes é como ocorreu, no corpo, desde tempos
imemoriais, o processo de adaptação que culminou no acervo, guarda e reprodução
dos conhecimentos historicamente acumulados por meio das linguagens.
Na realidade, o maior obstáculo do pesquisador
continua sendo estabelecer as correlações entre a forma e a função, no sistema nervoso
central, em níveis macroscópico (órgão), microscópico (célula), ultramicroscópico
(molécula), atômico e subatômico. Dito de outro modo, se o ser humano é capaz de
falar e escrever se torna obrigatório existirem áreas anatômicas e funcionais, nos
níveis acima mencionados, responsáveis pelas linguagens.
Os entraves aumentam na razão direta do avanço
dos estudos na direção da menor estrutura. O desconhecimento fica mais denso a partir
da molécula, portanto ainda muito distante da unidade massa‑energia, no interior
do átomo, objetivo maior da investigação científica.
A convicção de um evoluir temporal impõe de modo
contundente o estudo das mudanças corporais estendidas no tempo. Assim, sob a guarda
da anatomia, no nível macroscópico, e da fisiologia do sistema nervoso central (SNC),
é possível ensaiar por meio da paleopatologia a análise das impressões determinadas
pelo cérebro dos hominídeos, os antepassados muito distantes, na face interna dos
crânios fósseis.
As transformações sofridas na forma do SNC há
milhares de anos, e, consequentemente, o modo como o órgão se mantinha, em contato
com os ossos do crânio, estão também com a atual capacidade de falar e de escrever.
Alguns antropólogos, como Calvin Wells, afirmam
que as moldagens endocranianas dos Pithecanthropus
(Homo erectus que viveu em torno de 300.000
anos) evidenciam as marcas das áreas identificadas como responsáveis pela linguagem
falada. Nesse sentido, é razoável pensar que esse antepassado já possuísse algum
tipo de fala.
Os atos de falar e de escrever estão unidos em
complexa ponte, envolvendo a maior parte do SNC com a vida de relação, principalmente
certos segmentos do córtex responsáveis com a capacidade de imaginar e representar
a ficção, isto é, a coisa não percebida na materialidade espacial.
Um dos principais alicerces da ponte entre o passado
muito antigo, contido no cérebro primitivo, oriundo da filogenia comum, e o cérebro
atual, resultante do processo evolutivo é a insubstituível polaridade entre a dor
e o prazer. Fugir da dor e buscar o prazer continua sendo a mais forte das ordens
genéticas da espécie. Os animais de qualquer espécie se organizam com o objetivo
de evitar a dor de qualquer natureza e ativar, sempre que necessário, as fontes
naturais produtoras de prazer. Entre as mais importantes estão a sexualidade e o
alimento, ambos acompanhados de incontáveis derivações simbólicas e
representações metafóricas.
As contradições contidas nos dramas sociais, provocados
pela luta em torno da sobrevivência dos antepassados humanoides, induziram, pouco
a pouco, modificações na forma do corpo e, especificamente, na do SNC, ajustando
as metas das novas funções: sobreviver com mais prazer e menos dor.
Aceitar o prazer e recusar a dor alicerçou o
projeto da vida humana no planeta. Todo o corpo foi adaptado a essa determinante
sócio‑genética. Incontáveis terminações nervosas livres mantêm todas as estruturas
corporais atentas à dor e ao prazer. Pode‑se afirmar, sem receio de estar cometendo
um exagero, que a vida humana não teria sido possível sem essa adaptação.