Amigos do Fingidor

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Linguagens e as memórias sócio‑genéticas



João Bosco Botelho


          Um dos aspectos mais intrigantes e fascinantes é como ocorreu, no corpo, desde tempos imemoriais, o processo de adaptação que culminou no acervo, guarda e reprodução dos conhecimentos historicamente acumulados por meio das linguagens.
Na realidade, o maior obstáculo do pesquisador continua sendo estabelecer as correlações entre a forma e a função, no sistema nervoso central, em níveis macroscópico (órgão), microscópico (célula), ultramicroscópico (molécula), atômico e subatômico. Dito de outro modo, se o ser humano é capaz de falar e escrever se torna obrigatório existirem áreas anatômicas e funcionais, nos níveis acima mencionados, responsáveis pelas linguagens.
Os entraves aumentam na razão direta do avanço dos estudos na direção da menor estrutura. O desconhecimento fica mais denso a partir da molécula, portanto ainda muito distante da unidade massa‑energia, no interior do átomo, objetivo maior da investigação científica.
A convicção de um evoluir temporal impõe de modo contundente o estudo das mudanças corporais estendidas no tempo. Assim, sob a guarda da anatomia, no nível macroscópico, e da fisiologia do sistema nervoso central (SNC), é possível ensaiar por meio da paleopatologia a análise das impressões determinadas pelo cérebro dos hominídeos, os antepassados muito distantes, na face interna dos crânios fósseis.
As transformações sofridas na forma do SNC há milhares de anos, e, consequentemente, o modo como o órgão se mantinha, em contato com os ossos do crânio, estão também com a atual capacidade de falar e de escrever.
Alguns antropólogos, como Calvin Wells, afirmam que as moldagens endocranianas dos Pithecanthropus (Homo erectus que viveu em torno de 300.000 anos) evidenciam as marcas das áreas identificadas como responsáveis pela linguagem falada. Nesse sentido, é razoável pensar que esse antepassado já possuísse algum tipo de fala.
Os atos de falar e de escrever estão unidos em complexa ponte, envolvendo a maior parte do SNC com a vida de relação, principalmente certos segmentos do córtex responsáveis com a capacidade de imaginar e representar a ficção, isto é, a coisa não percebida na materialidade espacial.
Um dos principais alicerces da ponte entre o passado muito antigo, contido no cérebro primitivo, oriundo da filogenia comum, e o cérebro atual, resultante do processo evolutivo é a insubstituível polaridade entre a dor e o prazer. Fugir da dor e buscar o prazer continua sendo a mais forte das ordens genéticas da espécie. Os animais de qualquer espécie se organizam com o objetivo de evitar a dor de qualquer natureza e ativar, sempre que necessário, as fontes naturais produtoras de prazer. Entre as mais importantes estão a sexualidade e o alimento, ambos acompanhados de incontáveis derivações simbólicas e representações metafóricas.
As contradições contidas nos dramas sociais, provocados pela luta em torno da sobrevivência dos antepassados humanoides, induziram, pouco a pouco, modificações na forma do corpo e, especificamente, na do SNC, ajustando as metas das novas funções: sobreviver com mais prazer e menos dor.

Aceitar o prazer e recusar a dor alicerçou o projeto da vida humana no planeta. Todo o corpo foi adaptado a essa determinante sócio‑genética. Incontáveis terminações nervosas livres mantêm todas as estruturas corporais atentas à dor e ao prazer. Pode‑se afirmar, sem receio de estar cometendo um exagero, que a vida humana não teria sido possível sem essa adaptação.