Amigos do Fingidor

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Sobre poesia, poemas & poetas 1/3



Zemaria Pinto
               

Poesia versus poema. De tão antigo, o tema pode parecer ao leitor menos atento um tanto esgotado. Nada mais enganoso. É recorrente escrever, e falar, que fulano lançou um livro de “poesias”, sicrano recitou suas “poesias”, fulaninha vai lançar um livro de “poesias” etc. Vá ao dicionário e constate: poesia é uma “composição poética de pequena extensão”. Até quantos versos, exatamente? − poderá perguntar o leitor cioso das precisões matemáticas e/ou linguísticas. Não sei. Mas, esqueçamos o que diz o dicionário e caminhemos um pouco por esse movediço e improvável terreno da teoria literária.
Poesia é o gênero literário, subdivisível nas categorias épica, dramática e lírica. Poesia é a experiência cósmica de um poeta, o conjunto de sua obra. Poesia pode ser também o coletivo do fazer poético em um determinado tempo ou espaço. O poema, por sua vez, é, para efeito didático, a unidade que enforma o todo da poesia: é a composição, um conjunto de versos dispostos de maneira arbitrária pelo poeta, obedecendo a cânones preestabelecidos, estando entre estes, inclusive, a desobediência a cânones preestabelecidos...
Poesia e poema são, portanto, dois animais distintos: este vive sem aquela tanto quanto aquela não precisa deste para ser. Um poema sem poesia, então? Claro, digno da lata de lixo mais próxima, mas um poema. E quantos poemas são perpetrados e quantos livros de poemas são editados sem poesia!... A contrapartida define um paradoxo insofismável: a poesia é um estado do ser, é contemplação mística, é o i/logismo a serviço do ir/racional − a poesia é. Ponto.
Há uma enorme carga de poesia em Grande sertão: veredas, em A paixão segundo GH. Há poesia num quadro de Van Gogh, num filme de Herzog, num pôr-do-sol no rio Negro, num fim de tarde em São Paulo, num passo de contradança, e, com o perdão da má palavra, também se encontra poesia num sorriso de criança. Já o poema, o poema-coisa, o poema-com-poesia, traduz em palavras aquilo que o artista-poeta discerniu no ser da poesia: a poesia traduzida em música, a poesia das imagens, a poesia que inventa línguas, remove palavras e fundamenta a linguagem.
A didática do dicionário, não tenho mais nenhuma dúvida, é um instrumento ideológico de coerção à poesia: ao tentar reduzir o geral dando-lhe a mesma definição, e, por extensão, as mesmas deformações do específico, procura, em verdade, eliminar ou esquecer o caráter arquetípico primordial da poesia − porque é através da palavra que o homem se aproxima do Ser e de si mesmo. Ignorar essa relação é frustrar todo o acúmulo de conhecimento produzido, desde Aristóteles às mais recentes discussões sobre o caráter intersemiótico da poesia.
No mais, é como escreveu o poeta mexicano Octavio Paz: “se o homem se esquecesse da poesia, se esqueceria de si próprio. Voltaria ao caos original.”