Amigos do Fingidor

quinta-feira, 26 de junho de 2014

As mulheres de Sergio Cardoso: cem anos de solidão


Zemaria Pinto



A leitura dos originais de O teatro urbano de mulheres de Lazone, de Sergio Cardoso, reavivou-me o debate sobre texto teatral ser ou não literatura, tão antigo quanto o teatro e a literatura. Polêmica similar ocorre entre letra de música popular e poesia, outra velha e boa discussão.
É preciso observar que o texto dramático guarda total homologia com a prosa de ficção, mantendo uma estrutura básica, formada por enredo, fábula, personagens, ambiente e tempo. Entretanto, o texto dramático alicerça-se na fala das personagens; sem fala nãotexto dramático, mas pode haver teatro. Dito de outra maneira: um texto dramático formado só de indicações cênicas não é literatura, mas pode ser teatro.
Conclusão: teatro é sobretudo espetáculo, com ou sem falas, mas o texto de teatro, se o há, é, sim, literatura. E mais ainda quando transformado em livro: se no palco ele, o texto, é apenas um dos componentes do espetáculo – e nem sempre o mais importante –, no livro ele é absoluto, transferindo ao leitor as funções de encenador, figurinista, contrarregra, iluminador, ator...
O teatro urbano de mulheres de Lazone reúne 12 textos de Sergio Cardoso, todos, salvo engano, levados ao palco, experimentados no embate com o público. Olhando-os agora, em conjunto, podemos observar o trabalho paciente, quase artesanal, do autor, construindo um universo próprio, a mítica Lazone, à margem direita do rio das Sombras, com seu imponente teatro, suas galerias subterrâneas, sua “cidade flutuante” e seus dramas humanos e sobre-humanos, sempre numa atmosfera suprarreal.
Sergio trabalha sobre um fio de navalha: humor e tragédia se misturam, em cenas antinaturalistas, com uma agilidade cinematográfica. Não à toa, o cinema é uma referência constante, seja no nome das personagens seja nas inúmeras citações de títulos clássicos. Tudo potencializado, as situações criadas, de um humor amargo (o humor pode ser doce?), aproximam-se do dramalhão hollywoodiano das primeiras décadas do cinema falado, com pitadas de noir; mas algumas figuras monstruosas remetem ao expressionismo alemão. Os fantasmas, aliás, são outra recorrência – ora como um recurso de flashback ora como personagens, interagindo na trama, interferindo em seu curso.    
As mulheres de Lazone, criadas por Sergio Cardoso, reinventam a história da cidade de Manaus, desde a crise da borracha até a primeira década deste início de século, contemplando exatos cem anos de imaginação a serviço da fantasia, onde convivem em deliciosa desarmonia cobras-grandes, vampiros, tartarugas radioativas, mendigos, loucos, socialites, prostitutas, malandros, políticos corruptos, fantasmas diversos e toda uma fauna de criaturas aprisionadas no dia a dia da cidade. E a despeito da grande quantidade de personagens a transitar no palco, a solidão das protagonistas – muito mais que a geografia e a história comuns – é o fio que costura as peças, dando-lhes unidade, estabelecendo vasos comunicantes entre elas, como num corpo vivo, montando esse extraordinário painel da arte cênica amazonense.

Mundica, Gilda, Carmem, Dorothy, Mercedita e todas as outras são mais que meras criações da mente inquieta do também artista plástico Sergio Cardoso: são arquétipos de mulheres que pintaram, com tintas épicas, a história cotidiana, banal, medíocre, desta cidade abrasadora, à margem esquerda do rio Negro.

Obs: apresentação do livro O teatro urbano das mulheres de Lazone, de Sergio Cardoso. Manaus: Valer, 2013.