Zemaria Pinto
Criador de
personas-poetas, pelo conceito de Eliot, Pessoa está mais para poeta dramático
que lírico, revelando-se este no interior daquele. Para mim, cada heterônimo
despe/veste máscaras diferentes a cada poema. Logo, Pessoa não é apenas Caeiro,
Campos, Reis ou ele-mesmo, mas muitos, muitos outros: “Vivem em nós inúmeros
(...) / Tenho mais almas que uma. / Há mais eus do que eu mesmo (...)”. Mário
de Andrade pegou isso legal, também: “Eu sou trezentos, sou
trezentos-e-cincoenta (...)”. Eliot conclui seu trabalho com uma constatação
apaziguadora: “duvido que em qualquer verdadeiro poema apenas uma voz seja
audível”.
O que eu quero propor,
afinal, em comum acordo com o mestre britânico, é que o poeta lírico encarna,
em cada poema ou grupo de poemas, uma personagem específica, que traz em si a
carga de experiência do autor, mas não é ele. Para ficarmos no âmbito da
literatura amazonense, quando Tenreiro Aranha escreveu, há duzentos anos, o
antológico soneto da Maria Bárbara, vestiu a máscara da mulher assassinada,
despedindo-se do esposo: a voz emissora era a da própria Maria Bárbara.
Tenreiro Aranha, o poeta-cidadão, por outro lado, exprimia-se por ele mesmo,
provavelmente, quando praticava aquele aulicismo sem-vergonha, que marca boa
parte de sua obra conhecida, e não precisava fingir que fingia sentir o que não
sentia. Aliás, aquilo nem é poesia.
Estas reflexões
remetem-me a uma outra falsa crença: a inspiração. É desnecessário, por tudo o
que já se disse, enfatizar o caráter falacioso desse fantasma, mas é preciso
dizer em alto e bom som que sem muito trabalho não se fazem poemas, não se
constrói poesia. As musas não têm escolhidos: somos nós, os poetas, que as
escolhemos, que as buscamos incessantemente, através de muita leitura, pesquisa
e exercício. O devaneio não é um atributo do poeta, mas sim de todo aquele que
desenvolve um trabalho criador. E aqui não podemos esquecer Coleridge, para
quem “a imaginação é a condição primeira de todo conhecimento”. A sinonímia
poeta/profeta está presente no imaginário ocidental desde Sócrates, via Platão,
para quem “é quando estão possessos e inspirados por um deus que eles recitam
todos esses belos poemas”. As “antenas da raça”, na verdade, colocam-se à
frente de seu tempo como profetas porque usam a imaginação com mais liberdade
que os demais artistas. O poeta anda
nu e tem
plena consciência disso,
não fosse o sorriso
maroto que lhe aflora aos
lábios, denunciando seu estado
de vigília permanente em pleno
devaneio. Et tout le rest est
littérature.