Amigos do Fingidor

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Sobre poesia, poemas & poetas 3/3




Zemaria Pinto

                      
Criador de personas-poetas, pelo conceito de Eliot, Pessoa está mais para poeta dramático que lírico, revelando-se este no interior daquele. Para mim, cada heterônimo despe/veste máscaras diferentes a cada poema. Logo, Pessoa não é apenas Caeiro, Campos, Reis ou ele-mesmo, mas muitos, muitos outros: “Vivem em nós inúmeros (...) / Tenho mais almas que uma. / Há mais eus do que eu mesmo (...)”. Mário de Andrade pegou isso legal, também: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta (...)”. Eliot conclui seu trabalho com uma constatação apaziguadora: “duvido que em qualquer verdadeiro poema apenas uma voz seja audível”.
O que eu quero propor, afinal, em comum acordo com o mestre britânico, é que o poeta lírico encarna, em cada poema ou grupo de poemas, uma personagem específica, que traz em si a carga de experiência do autor, mas não é ele. Para ficarmos no âmbito da literatura amazonense, quando Tenreiro Aranha escreveu, há duzentos anos, o antológico soneto da Maria Bárbara, vestiu a máscara da mulher assassinada, despedindo-se do esposo: a voz emissora era a da própria Maria Bárbara. Tenreiro Aranha, o poeta-cidadão, por outro lado, exprimia-se por ele mesmo, provavelmente, quando praticava aquele aulicismo sem-vergonha, que marca boa parte de sua obra conhecida, e não precisava fingir que fingia sentir o que não sentia. Aliás, aquilo nem é poesia.

Estas reflexões remetem-me a uma outra falsa crença: a inspiração. É desnecessário, por tudo o que já se disse, enfatizar o caráter falacioso desse fantasma, mas é preciso dizer em alto e bom som que sem muito trabalho não se fazem poemas, não se constrói poesia. As musas não têm escolhidos: somos nós, os poetas, que as escolhemos, que as buscamos incessantemente, através de muita leitura, pesquisa e exercício. O devaneio não é um atributo do poeta, mas sim de todo aquele que desenvolve um trabalho criador. E aqui não podemos esquecer Coleridge, para quem “a imaginação é a condição primeira de todo conhecimento”. A sinonímia poeta/profeta está presente no imaginário ocidental desde Sócrates, via Platão, para quem “é quando estão possessos e inspirados por um deus que eles recitam todos esses belos poemas”. As “antenas da raça”, na verdade, colocam-se à frente de seu tempo como profetas porque usam a imaginação com mais liberdade que os demais artistas. O poeta anda  nu  e  tem  plena  consciência  disso,  não  fosse  o sorriso  maroto  que  lhe  aflora  aos  lábios, denunciando  seu  estado  de  vigília permanente em pleno devaneio. Et tout le rest est littérature.