Amigos do Fingidor

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Miniconto, microconto, nanoconto, contos são? 2/7




Zemaria Pinto

2. EXPERIÊNCIAS, OBSERVAÇÕES
O meu primeiro estranhamento com narrativas curtíssimas, foi com Kafka, num livrinho das Edições de Ouro, de 45 anos atrás: Contos – A colônia penal e outros, que trazia clássicos como “A metamorfose”, “A sentença”, “Informações para uma academia”, “Um artista da fome” e “Na colônia penal” – de fato, capa e miolo discordavam. Lá estava o magnífico “Diante da lei”, com suas duas pagininhas, que eu encontraria anos depois como o centro irradiador de O processo. Lá estavam também textos de uma página e outros que podiam ser contados em linhas, como este “O desejo de ser pele-vermelha”:
Se alguém pudesse ser um pele-vermelha, sempre alerta, cavalgando sobre um cavalo veloz, através do vento, constantemente sacudido sobre a terra estremecida, até atirar as esporas, porque não fazem falta esporas, até atirar as rédeas, porque não fazem falta rédeas, e apenas visse diante de si que o campo era uma pradaria rasa, teriam desaparecido as crinas e a cabeça do cavalo.
(p. 76)

Falei de minha experiência pessoal, não da história do conto curto. O que são as fábulas de Esopo, se não contos curtíssimos? Há 2.600 anos, Esopo era capaz de relâmpagos como este:
Uma gata, tendo entrado na oficina de um ferreiro, pôs-se a lamber uma lima que ali se encontrava. Aconteceu que, esfregando a língua, saiu muito sangue. Ficou feliz, imaginando que tirava alguma coisa do ferro, até que, finalmente, perdeu a língua.
(p. 51)

Em Kafka temos uma imagem que vai se descontruindo na mesma velocidade do cavalo do pele-vermelha, até se tornar mera paisagem, do ponto de vista do cavaleiro. Mas, sob a perspectiva do leitor, o quadro que se apresentava antes é outro: cavalo e cavaleiro se metamorfoseiam, tornando-se um só: sem esporas, sem rédeas e sem poder ver a própria cabeça. As referências endógenas à obra de Kafka são óbvias: A metamorfose e América – naquela, a transmutação do indivíduo em algo aquém-humano; nesta, o pele-vermelha como alegoria da liberdade de ir e vir. Naquela peça de pouco mais de 50 palavras estaria a gênese desses trabalhos? Se não, pelo menos a manifestação de ideias em estado de latência.
Esopo, imaginado por Velázquez.
Século XVII.
A fábula de Esopo não deixa nenhuma dúvida quanto ao seu objetivo didático, mas nem por isso é menos inventiva, tantos são os símbolos e paradoxos espalhados em tão pouca extensão: gata, representando o estereótipo feminino; lima, um instrumento de desgaste lento, de tortura, talvez; sangue proporcionando felicidade, como se fosse o alimento desejado; e o improvável choque da perda total. Como estamos sob o protocolo da fábula, entretanto, mesmo o improvável é verossimilhante.

Em ambos os casos, a intensão se faz sentir a partir do tensionamento gradativo da narrativa, até a culminância, que se dá na última imagem – desaparecidas as crinas e a cabeça do cavalo, em um, e a perda da língua, no outro – quando a intensidade atinge o seu limite máximo.