Amigos do Fingidor

segunda-feira, 16 de março de 2015

Lábios que beijei 43


Zemaria Pinto
Eneida


Eneida era volumosa de corpo e de alma. Num tempo em que os bandidos, os loucos, as putas e os veados da cidade eram conhecidos pelo nome, Eneida era a bondade personificada, promovendo eventos filantrópicos, arrecadando dinheiro, víveres e medicamentos, tratando aqueles marginais da sociedade como cidadãos, com incursões cotidianas no presídio, no hospício, nos hospitais, nos puteiros e na Cidade Flutuante. Para uns, era apenas uma demagoga, demarcando um espaço político; para outros, a grande maioria, tinha aura de santa. Quando Eneida me procurou no banco, pedindo contribuição para mais uma de suas iniciativas, não pude deixar de reparar em seus seios excessivos, suas coxas colossais e sua bunda desmedida. Superlativa, Eneida era só adjetivos. Não foi difícil ganhar sua estima e confiança: virgem ainda aos 28 anos, a sexualidade represada arrebentou todas as comportas da abissal Eneida. Nos encontrávamos no único prédio de apartamentos da cidade, onde morava sua amiga D. Leandra, que uma cirurgia malsucedida deixara cega de um olho e a catarata cegava progressivamente o outro. Eneida era sua sombra, dia e noite, e ela retribuía com um compreensível silêncio: D. Leandra, quando mais jovem, fora uma cafetina famosa na cidade e ainda sofria com o preconceito. Eneida passou em minha vida como uma chuva fininha na madrugada: lenta, silenciosa e prazerosamente. Jamais brigamos, mesmo quando passava meses sem procurá-la; estava sempre disposta, sorridente e com o tesão à flor da pele. Assisti ao envelhecimento progressivo da vastidão de seu corpo, fonte de alegrias inenarráveis. Quando morreu, pouco antes de completar 50 anos, de um inexplicável mal súbito, a cidade parou para reverenciar Mãe Eneida. Acompanhei o gigantesco e ecumênico cortejo de longe – e me flagrei excitado com a lembrança vertiginosa dos momentos sagrados em que me perdi na imensidão de Eneida.