Amigos do Fingidor

quinta-feira, 26 de março de 2015

Medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes 2014 – 1/5



Zemaria Pinto

I

Chegamos à 10ª edição da medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes. Estive aqui nesta tribuna em 2007, quando o prêmio era entregue pela terceira vez. Naquela ocasião, foram agraciados com a Medalha o empresário Roberto Tadros, hoje nosso confrade, a inesquecível mestra Ivete Ibiapina, a quem minhas filhas aprenderam a chamar de Tia Ivete, e o romancista Milton Hatoum, inventor de algumas das personagens mais marcantes da literatura brasileira dos últimos 25 anos.
Hoje, nos reunimos para celebrar a obra social da Fazenda da Esperança, a arte multifacetada do extraordinário Sergio Cardoso, e a literatura de um dos poucos sujeitos a quem, nos meus 57 anos de vida, nunca tive dúvida em classificar como amigo: o poeta Alcides Werk.
Mas antes, quero dedicar algumas palavras à arte deste que empresta seu nome e sua data natalícia à comenda: Péricles Moraes. Penso que não podemos deixar de relembrá-lo nesta noite que é também dele, todos os anos, abril após abril. E assim como, há sete anos, lembrei seu duplo discurso, por ocasião da instalação da Sociedade Amazonense de Homens de Letras, antecessora de nossa Academia, na noite de 9 de Janeiro de 1918, hoje falarei brevemente de um ensaio intitulado “Exaltações da poesia tropical”[1], onde o escritor se contrapõe, veladamente, ao nome misógino e machista daquela Sociedade só de homens.
Pelo que se lê no referido ensaio, dedicado à poesia da nossa querida Violeta Branca, a primeira mulher a ocupar uma cadeira nesta Academia, em 1949, a entidade deveria se chamar Sociedade Amazonense de Mulheres e Homens de Letras, exatamente nesta ordem. Se não, vejamos.     
Com a maestria que lhe era peculiar, Péricles Moraes divide o trabalho em três partes: na primeira, introduz a poesia de Violeta Branca, a partir do poema “Minha lenda”, que, não por acaso, é o poema de abertura de Ritmos de inquieta alegria, a obra seminal de Violeta. Sua leitura muito enriquece o poema, tal a profusão de comparações e o uso referencial das mitologias as mais diversas, numa demonstração ímpar de erudição, para explicar e justificar a mitologia cabocla, onde um sincrético Tupã, para castigar a sedutora Iara, castiga-a, transformando-a em mulher.
Na segunda parte do ensaio, Péricles Moraes, a partir do perfil intelectual de Violeta Branca, pinta um panorama da participação da mulher na literatura mundial, com ênfase na Europa – na França, especialmente, mas sem esquecer as brasileiras Carolina Nabuco, Lúcia Miguel-Pereira, Francisca Júlia, Cecília Meirelles e Gilka Machado, entre outras, apontando que:

Se, em verdade, (as mulheres) vão sendo compreendidas e justificadas as suas reivindicações sociais, as suas ambições profissionais, os seus anseios emancipadores, bem ao revés, tudo se tem feito, sistematicamente, odiosamente, para destruir as suas mais legítimas aspirações literárias e científicas. (110-111)

Para deixar bem claro que suas palavras não são gratuitas, mero panegírico, o rigoroso crítico, faz uma ressalva, que, eu diria, ainda é atualíssima:

Não intento aludir, é claro, à farândola desconcertante das versejadoras histéricas e medíocres que, à sombra dos dislates de um falso modernismo, e numa linguagem referta de cacologias, no mesmo passo corrompem e desmoralizam a arte e o idioma. (118)

Concluindo, Péricles retorna aos poemas de Violeta Branca:

Tudo na sua poesia é ansiedade e inquietude. Não aquela inquietude que é ceticismo e ausência de fé, que é insatisfação e tendência para os sofrimentos intelectuais, morais e metafísicos, mas a inquietude estética de que nos fala Daniel Rops, infundindo-nos à alma um sentimento raríssimo e que não encontramos senão nos artistas que trazem consigo “l’ardente blessure du génie”. (119)

Péricles Moraes, o patrono desta Medalha que é a condecoração cultural mais cobiçada de nosso Estado, é um exemplo raro de intelectual que dedicou toda a sua vida aos estudos e a compartilhá-los com generosidade. É imortal, sim, pois seu trabalho extraordinário continua atual – e nós, seus atentos seguidores, abril após abril, continuaremos a reverenciá-lo. 


(Discurso proferido pelo acadêmico Zemaria Pinto, por ocasião da solenidade de entrega da medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes, realizada no salão do Pensamento Amazônico, sede da Academia Amazonense de Letras, em 25 de abril de 2014.
Continua na próxima quinta-feira.)





[1] MORAES, Péricles. Os intérpretes da Amazônia. Organização: Tenório Telles. Manaus: Valer e Governo do Amazonas, 2001.