Amigos do Fingidor

quinta-feira, 5 de março de 2015

Miniconto, microconto, nanoconto, contos são? 6/7



Zemaria Pinto

6. NANOCONTO
A denominação nanoconto me foi sugerida pelo professor Allison Leão. Postamos vários nanocontos, dele e meus, no blog Palavra do Fingidor, e até umas “Notas para uma teoria do nanoconto”, que não reproduzo aqui porque tudo era apenas uma brincadeira, que foi crescendo, crescendo... E aqui estou eu, tentando explicar o que é, afinal, o nanoconto. Os exemplos extraídos de Kafka, Esopo, Trevisan e Aragão, citados anteriormente, adequam-se perfeitamente à ideia que temos do nanoconto. Vejamos dois exemplos do que criamos lá atrás, sem fazer relações históricas, de pura farra:
terminada a festa, o filho pródigo avisa:
pai, isto não é uma visita.
(pedra mística 8)

Joca, eu estou partida. Ao meio. Rachada. Ainda não acredito que você fez isso comigo. Depois de 10 anos, Joca? Como você pode ser tão filho da puta?
(Drops de pimenta 55)

   O primeiro nanoconto é de Allison Leão. O intertexto claro é a parábola bíblica do filho pródigo. O inusitado, no texto de Allison, é que o pai não percebera o sentido do retorno do filho, que precisa avisá-lo de que “aquilo” não é uma simples visita. Uma ironia que subverte o sentido do texto-fonte.
O segundo nanoconto é de minha autoria, faz parte de um livro de contos, ou melhor, de nanocontos, chamado Drops de pimenta, inédito em papel, apesar de premiado em 2003 no projeto “Valores da terra”, da Prefeitura de Manaus, que jamais cumpriu o prometido, a edição do livro. Mas essa é uma outra história. De terror.
A informação que temos, pelo que se depreende do texto: a expressão é de uma mulher, desesperada pela ação de um sujeito chamado Joca. Sua fala fragmentada reflete seu espírito despedaçado. Um caso passional, sem dúvida, embora não saibamos nada de concreto; uma traição, talvez. As palavras são significativas: “estou partida” separada de “ao meio”, para enfatizar o vocábulo seguinte – “rachada”; manifestação de descrença; ênfase no tempo – de convivência?; e finalmente a pergunta fatal, fazendo um juízo de valor.   
Em ambos os casos, a intensidade do que não foi dito, circunscrito nas elipses, enseja uma outra leitura ou leituras do meramente textual.
Adrino Aragão sintetiza essa nossa dúvida em um microconto:
– matou por amor! eis aí um conto em apenas três palavras.
– poderia também ser “viveu por amor”, não poderia?
– talvez até pudesse; mas aí o conto não seria conto, por lhe faltar algo mais, que eu não saberia explicar.
– ué!? (2006, p. 121)

Este conto, “apenas três palavras”, problematiza toda a nossa discussão: “matou por amor” traz em seu cerne a carga da tragédia, a intensidade transformadora; “viveu por amor” não tem pathos, não tem a energia necessária para transformar o textual em algo além das aparências.
O nanoconto, que já dissemos mordaz e ferino, pode ser também uma caricatura – uma imagem distorcida, como este, de Allison Leão:
vinte quilos depois, acabou com o casamento. o diabo é a aliança emperrada no dedo gordinho.
(romance possível romance xi)
Ou visionário, como este, do mesmo autor, que leva a reflexões muito atuais sobre sustentabilidade, armas nucleares, guerras:
na planície radioativa, uma barata sai pelo olho do último crânio humano. limpa uma antena na outra. e segue.
(skabrática 8)

O nanoconto pode encerrar uma carga poética, tensionando o textual – mais uma vez, peço vênia para mostrar um texto meu:
João não gostava de domingos. Criança, o dia se estendia até após o almoço, quando todos se recolhiam, esperando, morbidamente, pela segunda-feira. Mais tarde, adolescente, o domingo começava e terminava junto com o Fantástico. Só fora diferente enquanto Maria estivera por perto: domingo era dia de festa, acordar com a madrugada e dormir bem tarde. Agora, que Maria foi embora, João contempla o infinito, ouvindo o barulho do sol deslocando-se no céu da tarde de domingo.
(Domingo à tarde)

Observe-se que o texto é montado sobre elipses, com o tempo mostrado em quadros de um filme que é avançado numa velocidade superior à de uma exibição ordinária, até o desfecho poético, ilustrando o absurdo tédio dos domingos, na perspectiva do narrador.
Por fim, o nanoconto pode ser encontrado na rua, pintado em um muro, anônimo:

Mãe, me desculpe por não ser o filho que a senhora sonhou, mas lhe garanto, se ele fosse como a senhora sonhou, o sonho dele era ser como eu sou.  

Há alguns meses, substituíram essa beleza de pichação por uma idiota propaganda de fatfood  comida gordurosa para gente mal-educada.

Este texto, de autoria desconhecida, que eu achei pichado em um muro do bairro onde moro, ilustra o que é o nanoconto: um texto paradoxal, elíptico, poético, denso, intenso. Há uma história que caberia por certo em um romance, atrás dessas 30 palavras. Mas o que temos aqui é um garoto cheio de si, reconhecendo que falhou, na perspectiva de sua mãe, mas que ele, irônico, seguirá em frente, sem culpas ou desculpas. 
Sem outra alternativa, concluo que a diferença entre o microconto e o nanoconto está na carga de tensão que este tem a mais que aquele, seja do ponto de vista dramático, cômico-caricatural ou poético. Mas se não temos como medir a intensidade, confiemos no discernimento do leitor. Será que ele tem interesse em ser o vetor dessa discussão? 

Para ler outros nanocontos de Allison Leão, clique em skabrática, romance, possível romance ou pedra mística.