Amigos do Fingidor

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

O primeiro amor de Maranhão Sobrinho



Kissyan Castro
          
Entrar na intimidade de um artista sem divisá-la de sua própria arte é como estar às apalpadelas em intrincado labirinto, sem contar com a ajuda de um fauno. Sobretudo a intimidade de poetas da esteira de um Maranhão Sobrinho. Pois, como bem nos acautela Fernando Pessoa, esses demiurgos da lira costumam celebrar, também, as suas “dores fingidas”. No entanto, valendo-me do que a despeito disso escreveu o poeta Floriano Martins, em Escritura Conquistada, de que “os poetas estamos todos em cada um de nossos versos”, além do relato de testemunhas auriculares, apoiado por documentos oficiais, e do que se pode depreender do que nos deixou em prosa e verso o próprio Maranhão Sobrinho, arrisco-me a falar, ainda que minimamente, desta que talvez tenha sido o primeiro amor do nosso poeta maior. Refiro-me a Honorina Fernandes de Miranda.
Com o passamento do pai, o Capitão Honório Fernandes de Miranda, e vendo abalada a estrutura econômica da família, Manoel Raimundo Nonato de Miranda resolve deixar Cururupu, sua gleba natal, para vir exercer o magistério na então próspera Vila de Santa Cruz da Barra do Corda. A mãe, Dona Rita Maria da Silva Miranda, recusa-se a acompanhá-lo, mas recomenda-lhe a irmã, a pequena Honorina Fernandes de Miranda, que, mesmo tenra, manifestava disposição e vivacidade incomuns, podendo muito bem auxiliá-lo em suas atividades.
Maranhão Sobrinho fora seu mais obstinado aluno, e não escapou às suas recorrentes traquinagens, chegando a botar pimenta moída no seu “torrado”. Hábil educador, Raimundo Nonato conseguiu vislumbrar, por trás da excentricidade peráltica do pequeno Zeca, o gênio invulgar que se tornaria mais tarde. Além da instrução basilar, Maranhão Sobrinho recebeu de seu mestre admiração e sincera amizade. Quantas vezes o poeta não deve ter-lhe visitado para tirar alguma dúvida retida durante a aula formal, ou para ouvir-lhe as exóticas histórias, folhear os livros de sua biblioteca particular, ou simplesmente – e por que não? – para contemplar a jovem Honorina, por quem cedo passou a nutrir especial afeto, e cuja formosura entusiasticamente exalta num poema publicado no jornal cordino O Porvir, em 21 de fevereiro de 1897, época em que supostamente namoravam:

Vês? Teus seios gentis por entre as rendas
Da perfumosa e cândida mantilha,
Cantam baladas e soletram lendas.

Teu rosto tem a palidez de Ofélia,
O perfume das virgens de Sevilha
E a mágica expressão do de Cordélia!

O saudoso escritor Antonio de Oliveira, na separata nº 82 da Revista das Academias de Letras, de 1976, foi quem primeiro trouxe à tona o assunto, ao referir-se a uma entrevista com Olímpio Fialho, amigo de infância de Maranhão Sobrinho, o qual lhe segredou que o autor de Papéis Velhos..., aos 18 anos de idade, tivera uma namorada chamada Honorina de Miranda, a Noca, como era comumente conhecida. Moça que, a julgar pela caligrafia impecável com que assinava os documentos oficiais, possuía esmerada educação.
Eu mesmo não tinha sequer noção do quanto significou essa primeira experiência amorosa para o aedo barra-cordense, até encontrar, em O Guarany, outro antigo periódico cordino, como por acaso, um texto em prosa do poeta, uma crônica que denuncia um Maranhão Sobrinho romântico, a desaguar o coração sem o menor desvelo. Transcrevo aqui um trecho:

Há lá para as bandas da Rua Formosa[1], célebre, muito célebre no canhenho do humilde rabiscador modelo destas linhas, uma celestial senhorita que me cativou docemente o coração. É um mimo da natureza; é a verdadeira coroa da criação...

Refere-se esta “celestial senhorita” a Honorina de Miranda? Provavelmente. Tanto que mais adiante ele indaga:

Conheces a minha bela?

Maranhão Sobrinho emitiu essa crônica ao jornal enquanto passava alguns dias com parentes, provavelmente em Carolina ou Riachão, cidades onde o clã Maranhão possuía presença expressiva. E a julgar pelo temperamento irrequieto do poeta, não é de se estranhar sua tendência andarilha de viajor. No entanto, sua aventura amorosa inaugural chegou ao fim quando numa dessas viagens teve um sonho, não um sonho qualquer, fruto do enfado e ansiedades da vida, mas um sonho premonitório, cujo relato do cumprimento Maranhão Sobrinho deixa registrado em versos, na Revista Elegante, em 23 de março de 1899:

Parti... e tu ficaste! Um só momento
Não pude me esquecer de ti, amada!
Do fundo da minh’alma angustiada
Fugira todo o meu contentamento.

E andei... mas tendo em ti o pensamento,
Nunca olvidei-te. Em meio da jornada,
Sonhei qu’esta minh’alma apaixonada
Tinhas lançado em tredo esquecimento!

Voltei então... julguei achar-te a espera
Minha cantando a doce primavera
Do nosso amor, festiva, palpitante...

Cheguei, enfim... Ó dor! Ó sentimento!
Como sonhei – achei o esquecimento...
E sorrias nos braços d’outro amante!

Quem teria sido esse “outro amante” em cujos braços o poeta flagrou sua amada Honorina? Em minhas pesquisas, acabei descobrindo que se tratava de Políbio Martins Jorge, filho do capitão Caetano Martins Jorge e Ana Martins da Cunha, influente família nesta cidade. Esse pérfido ato teria deixado profundas e indeléveis marcas em sua alma de poeta.
Este assunto seria irrelevante não fossem as implicações que viriam a ter tanto na poesia de Maranhão Sobrinho, quanto, talvez, nas motivações que lhe fizeram deixar Barra do Corda. A propósito, o que teria mesmo motivado o nosso aedo a deixar sua família, amigos, seu torrão natal, para nunca mais voltar a vê-los? A versão oficial reza que Barra do Corda tornara-se pequena demais para ele, e, à maneira de Rimbaud, exaurira todas as possibilidades de aquisição do conhecimento que sua aldeia poderia oferecer. Concordo. Mas parece uma versão cômoda demais. Teria sido apenas isso? Não buscava o nosso poeta destaque, posição social? Não. Ou não teria abandonado o curso normal em São Luís só por se ter indisposto com um dos professores. Ou teria procurado amparo em outra entidade afim, o que não fez. O que o levou daqui não teria sido a ambição por “metais preciosos”? Definitivamente, não. Pois, como nos diz Antônio Lobo em Os Novos Atenienses, Maranhão Sobrinho “possuía pelas coisas materiais da vida a mais soberba das indiferenças”. Poderíamos atribuir o seu êxodo talvez a uma frustração política, por causa da prevalescência do republicanismo local? Ou mesmo por suas inclinações nomadistas, próprias do seu temperamento erradio? Vale ressaltar que O Guarany, de 26 de fevereiro de 1899, trazia estampada na primeira página a seguinte manchete: “O Fim do Mundo em 13 de Novembro deste Ano”. Teria esta charlatanesca mensagem fustigado o nosso poeta, que para não enfrentar o Juízo Final por aqui mesmo, saíra às pressas apenas três meses antes?  Seria trágico, não fosse cômico. Por fim, não poderíamos atrelar a essas hipóteses também a sua frustração amorosa?
Creio que nos esquecemos de relacionar dois detalhes importantes: a mudança de Maranhão Sobrinho para São Luís, em 15 de agosto de 1899, com o casamento de Políbio Martins Jorge e Honorina Fernandes de Miranda, ocorrido em 27 de maio de 1899. Terá sido mera coincidência o nosso aedo ter deixado Barra do Corda, definitivamente, a menos de três meses do casamento do seu primeiro e grande amor? Junte a isso a tendência escapista do poeta e já não teremos uma hipótese que se possa descartar.
Dizem os antigos que jamais nos esquecemos do primeiro encontro, do primeiro beijo, da primeira intimidade, enfim, do primeiro amor.  Verdade ou não, deixemos que o próprio Maranhão Sobrinho nos conte em versos a sua experiência, num dos primeiros poemas que publicou ao chegar em São Luís:

E tu passas mimosa,
Ó casta e meiga flor da minha aldeia!
Gravando com os pezinhos cor de rosa
Estrofes raras na suave areia...

Maranhão Sobrinho de fato não a esqueceu. Sua imagem foi sendo mistificada, e verso a verso expurgada até a sublimação arquetípica da perfeição feminina, até que enfim estivesse pronta para reencontrá-lo, não mais em carne e osso, e correr o risco de perdê-la novamente, mas no âmbito do poema, onde a aguarda em sua turris ebúrnea, “longe dos homens e das casas”, onde só há lugar para dois, onde a eternidade é descartável, e apenas “dois brancos pares de travessas asas” ruflam uníssonas na imensidão azul do Sonho.




[1] Atual Frederico Figueira.