João Bosco Botelho
As rotas comerciais regulares entre a Índia e
a Grécia, descritas por Estrabão e Plínio, e a bem documentada presença dos
gregos, a partir do século 4 a.C., no reinado de Dario, quando foi fundada a
cidade de Barce, na região de Cirenaica, onde florescia importante núcleo de
conhecimento médico, podem explicar as trocas dos saberes da Medicina entre as
duas populações.
O tratado médico de Charaka Samhita, composto de oito
livros, uma das mais extraordinárias produções da Medicina indiana, é
apresentado em forma de um diálogo entre mestre e discípulo, descreve
impressionantes conhecimentos de cirurgias, especialmente a que utiliza um
retalho de pele para a reconstrução nasal, até hoje conhecida como “retalho
indiano”. Essa técnica cirúrgica é utilizada por milhares de cirurgiões no
mundo, inclusive eu, em Manaus, para compor a cirurgia plástica reconstrutora após
a retirada de câncer de pele da pirâmide nasal.
Esse livro descrevia exame clínico semelhante
ao da Medicina grega e ao dos dias de hoje: inspeção e palpação das partes do
corpo e a ausculta do coração e dos pulmões.
Várias doenças foram descritas com notável
precisão, como a diabetes e a tuberculose. De igual modo, existem indícios de a
malária ter sido associada ao mosquito, e a peste, ao rato. Os tratamentos eram
divididos:
– Clínicos: purgativos, enemas, sangrias pela
flebotomia e sanguessugas, hidroterapia, banhos de vapor, inalações, com as
receitas baseadas em cerca de 760 plantas medicinais, inclusive a Atropa belladona a Rauwolfa serpentina, como sedativo, usada no Ocidente até alguns
anos atrás;
– Cirúrgicos: cirurgia plástica, para
reconstrução nasal; fístulas anais; hemorroidas; tumores no pescoço; amígdalas;
drenagem de abscessos; amputações de membros; fissura lábiopalatina; hérnias; catarata;
cesariana era praticada com grande precisão, para salvar a mãe e o filho; retirada
de feto morto retido.
Além desses procedimentos cirúrgicos, o livro
descreve o tipo e a profundidade de incisão mais recomendada. A delicadeza dos
instrumentos cirúrgicos voltados à diérese e à síntese, reforçam a convicção de
que a cirurgia fazia parte integrante das práticas de cura: nos abscessos
deveria ter dois dedos de profundidade, sempre na direção das cavidades, em
certas áreas específicas, como pálpebras, bochechas, têmporas, lábios, axilas,
deveriam acompanhar as pregas naturais da pele com direção transversa, para as
regiões palmares e circulares e semicirculares para o ânus e o pênis. No término da cirurgia, a área operada
deveria ser lavada com água morna e os curativos utilizando retalhos de linhos e
drenos nos abscessos que deveriam ser retirados após três dias. As
recomendações eram enfáticas nas renovações diárias dos curativos e imobilização
das fraturas e luxações.
De modo absolutamente extraordinário, o livro
de Charaka Samhita descreve
instrumentos cirúrgicos, alguns usados até anos atrás e outros com utilidade
atual: fórceps para retirada dos fetos, nos partos com dificuldade de passagem
no canal vaginal (a cesariana de baixo risco retirou o fórceps do cotidiano das
maternidades), espéculos de exame dos condutos auditivos externos, escalpelos para abrir abscessos, drenos, seringas e tesouras de diferentes formatos, serras
indicadas nas amputações dos membros, agulhas de suturas com formas esféricas,
fundamentais nas cirurgias atuais, cautérios na coagulação de vasos nas
hemorragias.