Amigos do Fingidor

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Lábios que beijei 63


Zemaria Pinto

Inês


Um amor outonal. A metáfora desgastada é oportuna para nomear a relação entre duas pessoas que o tempo devastou no limite. Foi há cerca de 15 anos que a conheci, num tempo em que só conseguia atenção de uma mulher se pagasse caro – e, assim mesmo, com o cronômetro ligado. Frequentávamos o mesmo restaurante e de vez em quando nossos caminhos se cruzavam. Um dia ela chegou com o salão sem uma só mesa desocupada. Apontei-lhe a cadeira à minha frente. Começou ali uma amizade que se estenderia por alguns anos até que um câncer filho da puta levasse Inês de mim, em duas semanas. Nunca moramos juntos e isso nos fez bem, porque a cada encontro, ou a cada viagem, tudo era novidade. Até mesmo o sexo, que fazíamos sem pressa e sem culpas, quando, por algum motivo, meu ou dela, não conseguíamos ir até o fim. Mas nos divertíamos e éramos felizes. Nem os meus filhos e nem os filhos dela – um casal também – tentaram por reparo naquela relação. No máximo, diziam sem rodeios que parecíamos dois velhos doidos. Pela primeira vez, senti o convívio familiar, especialmente no contato com os netos – meus e dela – já quase adultos. A velhice é um aprendizado. O corpo e a mente se reeducam. Quando perdi Inês, me vi sozinho, sem apoio, e pela primeira vez tive a consciência da morte; sem temor nem cuidados excessivos, apenas o sentimento de que, sem Inês por perto, não seria bom. Porque o pior da velhice, feitas todas as contas, é a consciência do vazio, da escuridão, do nada.