Amigos do Fingidor

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Uma arqueologia do sagrado na terra cultivada



João Bosco Botelho

A transformação social, também chamada de revolução agropastoril, do Neolítico se processou como o produto final de combinações de circunstâncias que culminaram com técnicas para retirar da terra parte do sustento, sem dúvida, impondo profundas reconstruções no entendimento das doenças e da saúde.
Fortes indícios arqueológicos apontam para a valorização de certos elementos sagrados em torno do entendimento da morte. Alguns continuaram acompanhando as muitas linguagens-culturas nas novas trajetórias de conquistas. O espaço dominante foi deslocado, efetivamen­te, em direção das terras férteis próximas aos rios e lagos.
O lago de Stellmoor, próximo de Hamburgo, na Alemanha, foi especialmente significativo. Muitos objetos, aparentemente sagrados, com datação de 8.000 anos, assegurada pelo carbono 14, foram encontrados enterrados próximos das margens. Um deles despertou muita atenção: a estaca de pinho com um crânio de rena na sua porção mais alta, por certo esculpida por caçadores-coletores, já sedentários, que valorizavam esse animal como fonte de sobrevivência.
Em outra área de pesquisa arqueológica neolítica, não muito distante da anterior, foi resgatado um tronco de salgueiro com mais de três metros de comprimento, grosseiramente esculpido evidenciando a cabeça e o pescoço de uma figura humana.
O simbolismo expresso nos totens está claramente configurado na convivência de dois momentos distintos do universo mítico da pré-história: a divinização do bicho e a do próprio homem. Parece lógico pressupor não ser difícil a quem já tornou sagrado o circundante, tomar para si a sagração. 
As práticas médicas provavelmente inseridas como especialidade social nessa fase do desenvolvimento social sofreram influências das interpretações mágicas da natureza, ligadas à terra cultivada: complexo sincretismo das crenças herdadas do nomadismo, com as outras, mais recentes, do sedentarismo.
As heranças das linguagens-culturas dos caçadores-coletores, ligando-os aos animais, simbolizadas na pintura rupestre do médico-feiticeiro, na gruta Trois Frères, situada na fronteira franco-espanhola, e na escultura da mulher grávida, em processo de parto, mostrando grande edema vulvar, sem conseguir parir, sob a rena de mamas túrgidas, deixaram traços definidos na nova adaptação às mudanças provocadas pelo cultivo da terra e pelo pastoreio.
A divisão de trabalho que se seguiu interferiu decididamente no tipo de doença do homem como consequência da aquisição de novos hábitos sociais e da maior intimidade com a terra cultivada, onde vivem a maior parte dos vermes que continuam parasitando humanos e animais. 
As relações míticas do homem com o animal, que predominaram na pré-história, foram modificadas com a terra cultivada. A ordem religiosa anterior foi substituída pela solidariedade mística com o vegetal. O osso e o sangue foram deslocados pela terra para o esperma. Ao mesmo tempo, ocorreu a ascensão da mulher no novo espaço social, porque passou a ser reconhecida, tal como a mãe-terra reproduzia o alimento indispensável à vida, como a reprodutora do homem no seu próprio corpo.
O simbolismo sexual se tornou evidente nas muitas esculturas dos instrumentos para arar a terra em forma de falo e das figuras femininas obesas com enormes mamas, conhecidas como Vênus pré‑históricas. O pênis ao penetrar na mulher para fecundar passou a ser comparado ao arado rasgando a mãe-terra para germinar o alimento, garantindo a sobrevivência do grupo.